Todo escritor que se preze tem um conto de Natal. Nunca escrevi um conto de Natal. Se tivesse escrito, suspeito que seria tortuoso, ambíguo, até um pouco turbulento, como alguns dos meus Natais. Talvez fosse mais ou menos assim o conto que nunca escrevi:
Sujeito é um notório ladrão de joias. Foi preso, dedurado pela mulher – denúncia espúria, uma vingança rasteira e vil, feita por razões de foro íntimo, que não cabe aprofundar aqui. O cara ficou guardado no Central. Ou em Bangu, ou no Carandiru. Algum lugar ruim desses. Pegou 12 anos, apesar das atenuantes. Encontrou tempo – e conseguiu livros – para ler na cadeia: Dostoievski, Rubem Fonseca, Kafka. E Dickens, lógico. Teve bom comportamento naquele mundo pútrido. Agora, acaba de obter o indulto de Natal.
Sai do Carandiru, ou do Central, ou de Benfica, com uma mão na frente outra atrás. Quer encontrar o filho que não vê há três anos. O guri já deve estar com uns seis; ou já terá oito o pirralho? Sabe como é, o tempo voa, mesmo atrás das grades. Quer dar um navio para o piá – o presente sempre pedido, que ele nunca teve tempo (ou ânimo, ou paciência) para dar. Mesmo sem um tostão, vai para o shopping mais por rima do que por razão.
Ao entrar, dá de cara com o guarda que o prendeu quatro anos atrás. O desgraçado foi demitido da força pública e agora faz bico como segurança numa... joalheria. Eles se veem. Trocam olhares turvos, ermos e sombrios, que logo se tornam rancorosos e faiscantes. Gaspar, o presidiário, segue seu caminho. Garcia, o segurança, o segue com os olhos. Gaspar conclui que está no lugar errado, na hora errada – mas ainda não imagina o quanto. Na verdade, imagina o oposto quando, ao decidir deixar o shopping pelo estacionamento, vê um anel de brilhantes no chão. Quando o apanha, percebe que a joia ainda tem etiqueta. Decide voltar para devolvê-la à loja de onde ela saiu ou de onde foi, foi...
Sirenes soam seu alarme estridente. Correria e pandemônio. As portas são trancadas, ninguém entra, ninguém sai. No atropelo, Gaspar percebe que o anel rolou para o forro de suas calças, escorregando pelo bolso furado. Olha para os lados em desespero. Vê uma porta de serviço. Entra. É o vestiário dos funcionários. O Papai Noel está trocando de roupa: é a troca de turno. Gaspar se mete nos trajes do bom velhinho. Quando dá por si, está instalado no trono vazio, a basta barba postiça a comichar. Os ladrões fugiram, as coisas estão voltando ao normal. Garcia passa por ali enquanto os pais levam os filhos para fazer os pedidos ao Santa Claus. Um menino senta em seu colo. Gaspar sente o coração se apertar – mas não de medo.
– O que você quer, meu filho? Um navio?
O garoto se surpreende, mas se recompõe:
– Navio eu já te pedi três vezes e tu nunca me deu.
Gaspar engole em seco e molha os olhos.
– Agora, quero dar para minha mãe uma coisa que meu pai sempre prometeu e nunca deu... Um anel bem bonito...