Tem um cachorrinho que fica na janela do vizinho. Vejo-o todos os dias, enquanto escrevo, aqui, no remanso do meu isolamento social. É um cachorrinho branco, parecido com o Milu, o cachorro do Tintim.
Hoje a maioria dos leitores não sabe quem é o Tintim. É um personagem da história em quadrinhos do belga Hergé. O Tintim era um repórter que viajava por todo o mundo levando o Milu junto. O Milu era um Fox Terrier branco. Ele falava, era cínico e bebia uísque. Um bom cachorro.
Houve polêmica envolvendo as histórias de Tintim, acusadas de racismo. Se olharmos sob a perspectiva atual, são racistas mesmo. Mas quem vai ler precisa compreender que Hergé escreveu sob o ponto de vista belga nos tempos do imperialismo europeu. Se houver essa contextualização, as historinhas de Tintim são ótimas de ler e sorver.
Mas isso não interessa aqui. Aqui o que interessa é o cachorro do meu vizinho, que fica o dia inteiro na janela. O dia inteiro, por Deus. Ele veste uma roupa de cachorro e se debruça no parapeito como se fosse uma pessoa. Passa o tempo todo olhando para a rua com grande interesse. Às vezes, quando outro cachorro caminha lá embaixo, na calçada, ele se projeta um pouco mais, bota meio corpo para fora e late, muito brabo.
Isso é uma coisa que os cachorros têm. Se um cachorro está passando na rua com o seu dono humano e vê outro atrás de uma cerca, ele se põe a latir furiosamente. O outro, por sua vez, late de volta com mais raiva. E, se há mais cachorros nas imediações, todos latem de um jeito belicoso, aqueles cachorros estão se desafiando, estão discutindo como se estivessem na Câmara dos Deputados.
Não entendo isso do mundo canino. Os cães não deveriam ser amigos? Não há solidariedade entre a espécie? Porque, se um ser humano passa, eles não ligam, mas se tem um cachorro junto, pronto: é a maior confusão, todo mundo latindo e brigando.
Francamente.
Pois esse cachorrinho na janela faz isso. Ele não é grande, mas não se intimida com pastores alemães ou dobermans. Ele late mesmo.
Aqueles latidos me irritam. Estou escrevendo, ouço os latidos, paro tudo e olho pela janela. Às vezes levanto e vou até o parapeito, para conferir quem ou o quê está na calçada. O cachorro me desconcentra. Pior: ainda que ele não faça barulho, me acostumei a olhá-lo. Tornou-se um hábito. Vejo-o quieto do outro lado e me intrigo: por que esse cachorro está tão quieto?
Assim foram-se as semanas e os meses de isolamento. Eu escrevendo aqui e o cachorro na janela ali. Mas, um dia, a janela do cachorrinho amanheceu fechada. Achei estranho. Calculei: vai ver dormiram até mais tarde e vão abri-la perto das 10 horas. Mas as 10 horas chegaram, as 10 horas passaram e a janela não se abriu. Estávamos já perto do meio-dia, e nada de a janela se abrir. Ué? Será que aconteceu alguma coisa?
Durante toda a tarde eu escrevia um pouco, parava e olhava para fora, para ver se o cachorrinho estava do outro lado da rua. Que nada. Foi-se o dia, chegou a noite, e a janela permaneceu fechada.
Na manhã seguinte, a primeira coisa que pensei, ao acordar, foi: será que aquele cachorro chato vai estar na janela? Foi com alguma ansiedade que caminhei até a minha mesa, espiei para fora e... ele não estava. A janela do vizinho continuava fechada e o bairro continuava em silêncio.
Passei todo o dia com a sensação estranha de que algo estava faltando. À noite, cheguei à conclusão óbvia: eu não apenas me acostumara com o cachorrinho na janela, como gostava dele! Mas, que droga, e agora ele se foi. Será que morreu? Será que se mudou? Será que caiu da janela?
No terceiro dia, ao deparar com a janela mais uma vez fechada, suspirei de tristeza. Cheguei a pensar em ir até o prédio do vizinho, bater na porta do apartamento e perguntar o que tinha acontecido, mas me contive. Melhor não se meter com os cachorros alheios.
Paciência. Suspirei de novo, resignado. Peguei meu café e de ombros baixos, liguei o computador, para escrever minha crônica. Mas não tinha ideias. Deu-me um branco. Pensando no cachorro, não conseguia me concentrar. Bebi o resto do café. Ia me erguer para buscar outra xícara, quando... ele latiu! Corri para a janela e o vi no prédio do outro lado da rua, debruçado no parapeito, dentro de sua roupinha, latindo ardorosamente para um guaipeca que vagabundeava perto de um saco de lixo. Sorri. Fiquei feliz. Sentei-me para escrever, revigorado. E, embora estivesse sozinho, falei bem alto, como em comemoração:
– Late, cachorrinho! Late!