Por que Lara virou hino? Fazia-me essa pergunta, enquanto investigava sua vida, nos albores dos anos 90. Agora, quando se completará cem anos do seu primeiro jogo pelo Grêmio, sei qual é a resposta, e ela está acima e além do futebol, e serve bem para o mundo do século 21.
Havia lendas em torno de Lara. A melhor de todas, que ouvi muitas vezes, de muitas fontes, era sobre sua morte. Lara sofria de uma fraqueza qualquer no coração e os médicos já lhe tinham aconselhado a deixar de jogar. Mas o futebol e o Grêmio eram a sua vida, ele não podia parar. O campeonato foi em frente e a decisão ocorreria, como sempre, em um Gre-Nal. No dia da final, Lara se sentia especialmente mal, mas, ainda assim, foi a campo. E o Inter atacou, o Inter estava melhor, e Lara defendia num canto, defendia no outro, espalmava a escanteio, voava no ângulo. Até que o juiz marcou um pênalti contra o Grêmio. Do outro lado, quem se apresentou para bater foi ninguém menos do que o irmão de Lara, um centroavante conhecido por seu chute fortíssimo. O irmão, sabedor dos problemas de saúde do goleiro, advertiu:
“Irmão, sai do gol, que essa, se tu pegar, tu morre”.
Lara teimou:
“Pois não saio”.
O irmão suspirou e encaminhou-se para a cobrança. Lara ficou debaixo da trave, fitando a bola, imóvel feito um leopardo antes do bote, na expectativa. O irmão veio e mandou um bazucaço. Lara decolou na horizontal e, contra todas as possibilidades, encaixou a bola no peito. Mas a pancada havia sido tão poderosa que uma veia do seu coração gremista arrebentou e ele morreu ali mesmo, sobre a cal da grande área, agarrado à bola, mais do que nunca campeão.
Eu adorava essa história, e nela havia pedaços de verdade por todos os lados. Lara realmente saiu de um Gre-Nal para morrer. Foi a decisão do Campeonato Farroupilha de 1935, um título improvável que o Grêmio conquistou com tanta galhardia que é comemorado até hoje, a cada setembro, e o será até que se completem cem anos daquele jogo. Outra verdade é a respeito do pênalti batido por um centroavante de chute violento. O centroavante era Arthur Friedenreich, que, dizem, fez mais gols do que Pelé. Fried, chamado “El Tigre”, tinha um coice em cada perna e nunca havia errado um pênalti. Até enfrentar Lara num jogo da Seleção Paulista contra a Seleção Gaúcha. Fried chutou e Lara defendeu, e defendeu tantos outros chutes, mais de 20, que, ao final da partida, os paulistas o carregaram nos ombros, em triunfo.
Essas façanhas, portanto, foram verdadeiras, mas, infelizmente, não houve o enfrentamento com o irmão no Gre-Nal. Se houvesse, seria tragicamente lindo.
Colhi inúmeras histórias sobre ele, ótimas histórias, porque são do tempo do futebol romântico, jogado por amor. Mas o que de fato me impressionou, e me levou a escrever agora, foi a coincidência dos depoimentos de todos os que o conheceram.
Conversei com sete ou oito pessoas que conviveram com Lara, como o jornalista Ivo dos Santos Martins, que citei ontem, e Oswaldo Rolla, o “Foguinho”. A primeira característica que esses contemporâneos de Lara citavam, quando iam descrevê-lo, era sempre a sua integridade. Sempre.
Lara, acima de tudo, era um homem honrado. Se, durante um jogo, cometesse uma falta não marcada pelo árbitro, segurava a bola, parava tudo, admitia o erro e reivindicava a punição. E se, ao contrário, um adversário simulasse uma falta, não se conformava, ia até ele e o convencia a admitir o logro. Seu prestígio era tamanho que o outro acabava confessando. Lara era tão honesto que os clubes o chamavam para atuar como árbitro em suas partidas.
Quando morreu, em 1935, seu funeral eletrizou e parou a cidade. Foi o maior evento público de Porto Alegre até aquela data. Dirigentes do Grêmio pediram que lhe fizessem a máscara mortuária e ela hoje está exposta no museu do clube, como se Lara fosse um faraó.
Toda essa comoção não se deu pelas façanhas esportivas de Lara, e sim por sua estatura ética. Fosse ele apenas um craque, e não um homem leal e reto, talvez despertasse admiração, mas não veneração. E é isso que me leva a escrever a seu respeito. É a consciência de que hoje, mais do que nunca, é preciso ter noção da relevância de valores intangíveis, como a honra. A decência era, é e sempre será importante em qualquer sociedade humana. A decência de cobrar mais de si mesmo do que dos outros, como fazia Lara. Sobram-nos moralistas, no século 21. Falta-nos moral.