Trabalhei um punhado de anos como repórter na Assembleia Legislativa. Era bom, aprendi muito. Sentia-me como se estivesse em um dos romances de Arthur Hailey, em que a trama se passa em um único ambiente, como um aeroporto, um hotel ou um hospital. Tanto quanto esses locais, a Assembleia é um mundo à parte, com seus dramas e suas comédias.
Às vezes, quando não tinha pauta específica, nem uma boa ideia para a matéria do dia seguinte, fazia o que os vendedores de livros chamam de “xaveco”: conversava aleatoriamente com as pessoas, até encontrar algo interessante. Fazia isso com método: subia de elevador até o último andar do prédio e ia passando nos gabinetes um por um, descendo pelas escadas até chegar ao térreo e às diretorias legislativas.
Numa dessas empreitadas, lá no 12º andar, deparei com uma moça famosa por sua beleza provocante. Havia muitas princesas, entre as milhares de pessoas que por lá passavam todos os dias, mas ela era a rainha. Havia sido miss de alguma coisa, inclusive. Naquele dia, uma sexta-feira, ela parou bem na minha frente e disse, com sua voz de leite condensado, caramelizado com flocos crocantes, coberto com o delicioso chocolate Nestlé:
– Aim, Daviiid, hoje está tããão queeente… Como me arrependi de não ter vindo com uma minissaia beeem curtinha… Tu não acha que eu devia ter vindo com uma minissaia beeem curtinha?
Olhei para as longas pernas dela dentro daquele jeans beeem apertado, engoli em seco e respondi:
– Seria agradável…
Um dos personagens mais conhecidos da Assembleia era Paulo Bráulio Saldanha, que todos chamavam de Professor Saldanha. Ele era baixinho, usava sempre uns imensos óculos quadrados e um terno amarfanhado. Falava com voz de locutor de rádio, num português perfeito, sem sonegar um único plural e mantendo a concordância impecável. O Professor Saldanha chegou a participar do Sala de Redação e de outros programas de rádio, mas, na Assembleia, trabalhava como assessor, em geral do PMDB. Tornamo-nos bons amigos. Ele descobriu que eu gostava de História e me trazia livros de sua biblioteca, recomendando com ênfase:
– Este tu tens que ler! Tens que ler!
Uma vez, depois de um convescote em um bar da cidade, o Professor Saldanha entrou no táxi e disse ao motorista, com aquela sua voz de discurso de posse:
– Leve-me para a Morada dos Deuses!
O carro arrancou e o Professor adormeceu no banco de trás. Acordou com a voz do motorista anunciando:
– Chegamos!
Estavam diante do Cemitério São Miguel e Almas.
– Mas o que é isso, meu filho? – perguntou o Professor.
– Não é aqui a Morada dos Deuses?
– Não, meu caro. A Morada dos Deuses é o bairro Partenon!
Quando o Professor Saldanha discorria sobre algum fato histórico, na sala de imprensa da Assembleia, o grande repórter Gustavo Motta aparteava:
– Sabe muito do passado, mas nada do presente…
O Professor Saldanha sorria com benevolência de quem sabe que é de passado que é formado o presente.
Poderia escrever um livro sobre as histórias e personagens da Assembleia. Nesse relato, é claro, os deputados teriam inevitável destaque. São 55 seres humanos montando um painel heterodoxo e complexo. Havia de um tudo ali, no meu tempo. Um dormia durante as votações, outro teve um caso rumoroso com a beldade de minissaia que encontrei no 12º andar, um terceiro era temido pelo seu nauseabundo mau hálito. Certo dia, o Gustavo Motta foi pautado para entrevistá-lo. Passei por perto e vi o nobre edil discorrendo com entusiasmo sobre algum projeto importantíssimo, os perdigotos voando-lhe boca afora, e o Gustavo teso, empunhando o gravador com mão trêmula, enquanto uma triste lágrima escorria-lhe rosto abaixo.
Mas muitos não eram folclóricos, eram até fascinantes. Como José Paulo Bisol, intelectual de brilho raro e vasto conhecimento. Ouvir o Bisol falando era uma aula.
Tempos atrás, Bisol disse, em uma entrevista, que lamentava porque eu “era de esquerda no passado” e especulava que havia mudado para agradar à empresa em que trabalho. Fez essa avaliação, evidentemente, porque eu criticava o governo do PT. Fiquei triste pelo Bisol achar que eu poderia ser assim tão desonesto em meu trabalho. Agora, curiosamente, os bolsonaristas dizem que sou petista porque critico o governo Bolsonaro. E, como o Bisol, eles também alegam que quero agradar à empresa em que trabalho. De fato, os opostos se atraem.
Mas o que pretendia dizer é que você pode encontrar uma imensa variedade de tipos humanos numa casa legislativa. Como os deputados vêm de regiões diferentes e de classes econômicas diferentes, há um caráter heterodoxo no conjunto montado por eles a cada mandato. Há ricos, pobres e remediados, há os extremamente cultos e os pouco letrados, há jovens e velhos, há homossexuais e heterossexuais. E há, também, os desonestos. Porque a sociedade, em geral, está muito bem representada no Poder Legislativo. Os brasileiros, se olharem para o Congresso, estarão olhando para o espelho. Aquela é a imagem do Brasil. Você quer melhorar essa imagem? Só existe um jeito: você terá de melhorar.