A Botinha da Zona vai fechar, li em GaúchaZH. Fiquei triste. Não que fosse cliente d’A Botinha da Zona. Na verdade, nunca entrei na loja. Mas a conhecia bem. Morei ali perto, na Rua Botafogo, e posso dizer que, durante anos, a vi praticamente todos os dias.
Esse nome, A Botinha da Zona, era o que mais me encantava. É algo docemente antiquado, que remete a uma época mais lenta e mais amena. Eu passava em frente à Botinha da Zona e me acometia uma sensação de segurança. O mundo não havia mudado tanto, afinal. Decerto ainda havia pessoas que tomavam café da tarde e usavam gola olímpica.
É claro que, hoje em dia, ninguém mais colocaria o nome de um comércio de A Botinha da Zona. Seria, talvez, Little Boots ou Cia das Botas.
Nos anos 1970, no Navegantes, a quadra e meia da casa do meu avô, tinha o que ele dizia ser uma "loja de miudezas" chamada Ao Carancho. Lá você encontrava coisas maravilhosas, como botões puxadores de três camadas, revistas do Capitão Marvel e bolinhas de gude águida e aça. Ao Carancho. Nome tão bom quanto A Botinha da Zona.
Na placa que anunciava A Botinha da Zona estava escrito: “Desde 1919”. Um século inteiro! Naquele ano, o mundo ainda estava abalado com o surto de gripe espanhola, que matava mais do que a Primeira Guerra Mundial. Em Porto Alegre, morreram mais de 1,3 mil pessoas de gripe e, no distante centro do país, uma das vítimas foi o presidente eleito, Rodrigues Alves.
Cem anos! Durante cem anos, se você precisava de um sapato barato e confiável, podia socorrer-se n’A Botinha da Zona. Li, na matéria de GaúchaZH, que o proprietário levará com ele, como uma espécie de troféu, um Kichute que deixava exposto no balcão.
Lembrei-me do meu primeiro Kichute. Foi uma emoção para mim, que só usava Conga. É que, naquele tempo, havia três tênis: a Conga, o Bamba e o Kichute. A Conga era a mais barata. Cabia dentro do orçamento da minha mãe, mas me causava problemas no colégio – os colegas gozavam que a Conga dava chulé. De fato, depois de muito uso, a Conga ficava com um cheiro rançoso, a gente tinha que colocar talco dentro e deixar secando ao sol. Então, usar Conga era correr risco de bullying.
O Bamba era muito apreciado pelas meninas. Um tênis bonito. Uma vez, a Alice saiu de casa vestida com uma minissaia sumária e calçando Bamba branco. Ela tinha pernas morenas, que ficaram realçadas pela combinação. Deu-me, assim, uma palpitação, quando a vi. Ela botou o pé em cima de um banquinho de pedra que havia na rua e perguntou:
– Gostou do meu Bamba novo?
Olhei para aquele joelho luzidio, engoli em seco e balbuciei:
– Lindo, lindo, lindo…
Eu não queria Bamba, queria Kichute, por causa do Cyborg. Você não sabe o que é o Cyborg. Era um herói de seriado dos anos 1970: O Homem de Seis Milhões de Dólares. O protagonista havia sofrido um acidente horrível, que o mutilara. Perdera um olho, um braço, as pernas e sei lá mais o quê. Mas os cientistas americanos o reconstruíram com órgãos mecânicos. Então ele se tornou super-rápido, superforte e ainda tinha uma visão biônica. A propaganda do Kichute era justamente com o Cyborg correndo. Assim, quando a minha mãe me deu aquele Kichute, eu me senti biônico. Até achei que estava correndo mais. E o melhor: o Kichute era dotado de umas travas de borracha, parecia uma chuteira. Meu futebol evoluiu muito com aquele equipamento avançado.
Terá a minha mãe adquirido o meu Kichute n’A Botinha da Zona? É possível. Quantas pessoas tiveram os pés aquecidos, protegidos e adereçados graças a ela, nesses últimos cem anos? Milhões, decerto.
Agora me ocorre: é possível que a mãe da Alice tenha comprado aqueles Bambas brancos dela n’A Botinha da Zona. É até provável. Acho que a Alice calçava seu Bamba branco quando a beijei na boca pela primeira vez. Acho, não: tenho quase certeza. Pensando bem, tenho certeza. Ela estava de Bamba e minissaia na reunião dançante que fazíamos no salão de festas. Tocava If, do Bread, e dançávamos agarradinhos. Meu rosto roçava no dela e, em meio à parte mais romântica da música, recuei lentamente o pescoço, a minha boca colou na dela e senti-lhe o gosto quente e suave. Meu coração queria arrebentar no peito e eu sentia vontade de gritar. Mas não gritei. Abaixei a cabeça. Olhei para seus pés dentro daquele belo Bamba branco. E disse para mim mesmo:
– Grande Botinha da Zona!