Meu filho Bernardo era pequeninho, mal sabia falar, quando pela primeira vez chamou a bisavó dele, dona Aurinha, de Bibi. A partir de então, muita gente passou a se referir a ela da mesma forma, eu inclusive. Há cerca de um mês, Bibi morreu suavemente, aos cem anos de idade.
Nós a vimos pela última vez em setembro. Depois, retornamos para os Estados Unidos. Num dos dias dessa nossa estada no Brasil, almoçamos na casa dela. Bibi estava muito bem, muito lúcida. Em meio à refeição, de repente, sem nenhum motivo aparente, ela perguntou:
É certo que Bibi sentia o peso da idade – não tinha mais forças para caminhar, por exemplo. Mas quem diz que algum dia ela se queixou?
– Sabe o que é que eu tenho?
Olhei para ela, interessado:
– O que é que a senhora tem, Bibi?
– Cem anos.
Abri a boca, encantado.
– Que coisa linda de se dizer – murmurei.
Ela sorriu.
E foi algo lindo mesmo. Não pela longevidade da Bibi. Não. Mas pela forma como ela encarava a longevidade. Havia mais do que orgulho naquela afirmação tão singela; havia satisfação. Bibi, aos cem anos de idade, sentia-se feliz e agradecida por estar viva.
Lembrei-me de uma entrevista que Freud concedeu nove anos antes de morrer. Reproduzi parte dessa entrevista no meu último livro, Hoje Eu Venci o Câncer. Freud já estava doente, já padecia dos males da idade. E, a propósito da vida e da morte, declarou ao entrevistador:
"Talvez os deuses sejam generosos conosco, tornando a vida mais desagradável à medida que envelhecemos. No final, a morte parece mais tolerável do que os muitos problemas que temos que enfrentar".
Não para alguém como a Bibi. É certo que ela sentia o peso da idade – não tinha mais forças para caminhar, por exemplo. Mas quem diz que algum dia ela se queixou? Nunca, em nenhum momento, para ninguém.
Agora, dias atrás, estava pensando nisso, nessa eterna jovialidade da Bibi, enquanto caminhava para ir almoçar em uma cantina toscana que tem aqui perto, da qual escrevi tempos atrás. É a cantina do meu amigo florentino Andrea. No caminho, passei em frente à antiga loja da dona Ethel, sobre quem também escrevi em antigas crônicas.
Dona Ethel viveu 103 anos. Trabalhou até seus últimos dias nessa pequena loja – um armarinho que vendia brinquedos e bugigangas para as crianças da escola onde estuda o meu filho. Dona Ethel adorava aquela lojinha, que abriu em 1939 com o marido. Na parede, havia um cartaz que dizia: "Eu amo os meus clientes". E amava mesmo, a gente percebia que amava. Ficava sentadinha na entrada e atendia a todos com visível contentamento. Certa tarde, fez algo que poderia ser comparado ao que a Bibi me disse naquele almoço de meses atrás. Sem que perguntasse sua idade, ela apontou para uma matéria de jornal que fora emoldurada e pendurada em uma estante.
A reportagem informava que ela estava, exatamente, com cem anos. Recordo ter me espantado.
– Cem anos! – exclamei.
Ela, feliz:
– Cem anos…
Depois que dona Ethel morreu, os filhos reformaram a loja. Nesse dia em que ia para a cantina do Andrea, parei em frente à vitrine, colei o nariz no vidro e olhei lá para dentro. Estava vazia e meio triste. Suspirei. Queria que a Bibi tivesse conhecido dona Ethel. As duas certamente teriam muito a dizer uma para a outra.
Mas… paciência. Fui em frente, andei mais quadra e meia e cheguei à cantina do Andrea. Ele me saudou italianamente, falando comigo e, ao mesmo tempo, com outras pessoas que estavam encostadas no balcão. Comecei a pensar no que iria comer, sem me esquecer daquelas duas professoras de vida. E, então, ouvi o Andrea dizer, ao brincar com alguém:
– Eu amo os meus clientes!
Olhei para ele, que sorria. Era como se estivesse vendo o sorriso contente da Bibi e da dona Ethel. Ele, então, olhou para mim. E eu disse:
– Cem anos, Andrea! Desse jeito, tu vais viver cem anos!