Li ontem uma notícia que me fez pensar em quatro dos meus vizinhos. Eles são o Bill, o Jim, a Allie e a Gail, todos americanos rondando os 70 anos de idade.
O Jim, já falei dele: é o meu vizinho que faz churrasco. Assim que a neve escorre e as cerejeiras florescem, ele transfere para a varanda uma churrasqueirinha do tamanho de uma maleta e de lá não sai mais. Fica de bermudas e pés descalços e camiseta do Bob Dylan. O Jim é mais fã do Bob Dylan do que o Peninha. Todos os espaços das paredes da casa dele, absolutamente todos, estão cobertos com fotos do Bob Dylan.
O Bill é de origem irlandesa. Há muitos irlandeses em Boston. No meio do século 19, uma praga dizimou as plantações de batata da Europa inteira. Ocorre que, na Irlanda, a batata era a base da alimentação de pelo menos dois terços da população. Deu-se, então, o que eles chamam de A Grande Fome. Os irlandeses passaram a morrer aos milhares e outros milhares fugiram do país. Cem mil vieram para Boston. Cem mil! Há hoje, no centro da cidade, um lindo monumento que lembra A Grande Fome. Na frente do monumento, os bostonianos plantaram uma plaquinha que reivindica silêncio em respeito à dor dos irlandeses que sofreram com aquela tragédia.
Os antepassados de Bill também devem ter sofrido. Mas ele é um homem aparentemente feliz. Tem uma voz profunda e relaxante, uma voz de camomila. Fala pausadamente, escandindo as sílabas num inglês perfeito, o que é um alívio para o interlocutor brasileiro. Usa bengala, porque aos 10 anos teve pólio. E, às vezes, aparece debaixo de um boné xadrez. É um avô clássico. Pena que não tenha netos.
Gail está sempre sorrindo, embora seu sorriso faça uma curva triste na esquina da boca. Ela era casada com um homem cerca de 20 anos mais velho. Ele passava bem dos 90 anos de idade. De uns tempos para cá, sua condição física se deteriorou, ele não conseguia mais andar. Um dia, eu vinha chegando em casa e a Gail correu em minha direção:
– Help! Meu marido caiu!
Corri até a casa dela. Ele estava deitado no chão da sala. Levantei-o com alguma dificuldade – era magro, mas pesado. Deitei-o em um sofá, ele sussurrou um muito obrigado e fechou os olhos de dor ou cansaço.
Não muito tempo depois, nós íamos para o Brasil e a Marcinha, sem saber o que fazer com umas lindas flores que sobreviviam em um vaso com água, decidiu dá-las para a Gail. Foi até lá, bateu, a porta se abriu e a Gail surgiu atrás daquele seu sorriso tristonho. Disse:
– Essas flores vêm em boa hora: meu marido morreu hoje.
A Allie também tem uma pessoa nonagenária em sua família. É a mãe dela, que mora sozinha na Califórnia. Vez em quando, a Allie vai até lá, porque a mãe foi hospitalizada ou está com alguma quizília de saúde. Ela é muito animada, a Allie. Fala em catadupas e conta casos dos vizinhos. Nessa faina de distribuir as plantas quando a gente viaja, certa feita deixamos um vaso pouco maior do que um copo para ela cuidar, enquanto estivéssemos fora. No vasinho, erguia-se uma única flor, que o Bernardo havia ganhado na escola. Era uma flor bem pequena mesmo, uma coisinha. Pois, quando voltamos, a Allie havia providenciado uma mudança: plantara-a em um vaso maior e a florzinha, agradecida, desenvolveu-se com glória e garbo, tornou-se robusta, vigorosa e muito mais colorida. Infelizmente, nós a esquecemos na sacada durante uma noite de inverno, e a florzinha amanheceu congelada como um frango de supermercado.
Mas acabei usando espaço demais para descrever meus vizinhos sem dizer por que o faço. Deixarei essa parte para amanhã. Aguarde.