Recebi uma mensagem estranha do meu amigo Nelson Guahnon, o famoso Cabeça.
O Cabeça possui vários talentos, entre os quais o de ser um jogador de cartas praticamente profissional. Se o jogo fosse legalizado no Brasil, ele seria um nababo. Tivemos vários confrontos de canastra na praia e, uma vez, uma única vez, o venci. Mas tenho treinado, desenvolvi alguns truques e, na próxima oportunidade, vou surpreendê-lo com uma tática imbatível que eu mesmo criei.
Aliás, falando em criar, ontem criei um prato novo. Chamá-lo-ei de Pain de Viande Coimbrrà. Os dois erres e o acento grave do Coimbra são para enfatizar a pronúncia francesa.
Decidi inventar essa receita porque aqui, como você deve saber, está fazendo muito frio. Para esta quinta-feira (4), inclusive, há previsão de blizzard, que é a pior das piores tempestades de neve. Ou seja: é o tempo dos vinhos tintos e dos pratos calóricos. Sinto que estou engordando, por conta disso. Mas não me importo. Enquanto a temperatura não subir para pelo menos sete abaixo de zero, seguirei com força nas comidas fortes.
Sinto que estou engordando. Mas não me importo. Enquanto a temperatura não subir para pelo menos sete abaixo de zero, seguirei com força nas comidas fortes.
Sendo assim, resolvi, de inopino, preparar o tal prato. Primeiro, pus um quilo de batatas para ferver. A batata, sempre digo, é uma das glórias da América. A humanidade mudou por causa da batata. Levada pelos descobridores à Europa, matou a fome do Velho e Cansado Mundo. Tanto que um dos mais belos quadros da fase inicial de Van Gogh é, exatamente, Os Comedores de Batata, em que ele retrata uma família pobre dos Países Baixos ao redor da mesa de jantar. Nesse quadro, Van Gogh ainda usa os tons terrosos do seu compatriota Rembrandt, mas já mostra o traço inquieto que o consagraria como um dos maiores artistas da História.
A batata é o único alimento posto à mesa, como soía acontecer com milhões de famílias europeias. Não havendo batata, o que havia era a tragédia. Pouco antes de Van Gogh pintar esse quadro, uma praga atacou as plantações de batata da Irlanda e as dizimou. Ocorre que a batata era só o que os irlandeses pobres tinham para comer. À falta dela, mais de um milhão morreram de inanição e perto de outros 2 milhões fugiram do país. Foi uma das maiores diásporas da Europa. Grande parte desses imigrantes veio para os Estados Unidos e 100 mil deles se instalaram justamente aqui, em Boston. É por isso que, no centro da cidade, há um belo monumento de bronze que lembra, com pesar, a Grande Fome Irlandesa.
Por todas essas razões, reverenciei aquele quilo de batatas antes de acomodá-las no prato que forjei a fim de enfrentar as inclemências do inverno da Nova Inglaterra.
Essas batatas, depois de amolecidas pela fervura, eu as amassei pacientemente com manteiga, sal e queijo parmesão, transformando-as em meigo purê.
Mas não é de purê que estamos falando, porque, adrede preparado, esperava um oloroso refogado de cebola e alho bem picadinhos. Para fritá-los, não empreguei o óleo vulgar, como você deve estar pensando. Ah, não. Espalhei, no chão da frigideira, esguias tiras de bacon e deixei que a gordura que delas escorreu fizesse o trabalho.
Quando esse refogado estava crepitando, derramei sobre ele um guisado de carne de porco com apenas 15% de gordura, que havia temperado com sal e pimenta do reino.
Então, misturei.
Misturei, misturei, misturei.
Terminada essa etapa, deitei o conteúdo da frigideira e o purê numa mesma travessa, aplainei tudo com carinho, cobri com queijo parmesão e levei ao forno. Após meia hora, abri o tinto da Califórnia, chamei o Bernardo e a Marcinha e engordei mais exatos 800 gramas de uma só vez.
Foi bom.
Mas agora percebo que ainda não falei da mensagem estranha que recebi do meu amigo Cabeça! Farei isso amanhã.