Temos, a maioria, um traço de ignorância comum: sabemos que um dia morreremos, mas desconhecemos o momento e as circunstâncias do final da vida. David Coimbra, jornalista e colunista de Zero Hora e da Rádio Gaúcha, recebeu de um médico, a certo momento de sua luta contra um câncer grave, uma estimativa: restava-lhe, provavelmente, pouco tempo. Nem anos – apenas meses, talvez. Confrontado com o curto prazo, decidiu escrever um livro que permitisse ao filho pequeno, Bernardo, conhecer, no futuro, quem fora seu pai. Hoje Eu Venci o Câncer (L&PM Editores, 208 páginas, R$ 34,90), já disponível nas livrarias, recapitula os anos mais difíceis de David, diagnosticado, no verão de 2013, com um tumor no rim esquerdo e metástases ósseas.
– Foi certamente o livro mais difícil que já escrevi – conta o autor, hoje com 55 anos, em entrevista de sua casa em Boston, Massachusetts, nos Estados Unidos, para onde se mudou por conta do tratamento.
Hoje Eu Venci o Câncer, vigésimo título de sua carreira, é mais do que o relato de um paciente que se considerava uma fortaleza física até os 50 anos e se descobriu refém de uma das mais temidas enfermidades espalhando-se, agressiva, pelo corpo. Trata-se de uma quase autobiografia, um compêndio de memórias, afetos, dores e o sobe e desce típico de qualquer trajetória. Não é um enredo de morte, mas de vida. Para introduzir os personagens que o rodeavam e dar sentido ao que viveu durante a alternância de esperanças e frustrações entre as diversas tentativas de tratamento, o jornalista vai e vem no tempo. Fala do pai alcoolista que viu pela última vez aos oito anos de idade, da mãe que vendia coleções de livros para criar com dificuldade três filhos, dos primeiros tempos de repórter, dos parceiros de longa data que seriam fundamentais na travessia do pesadelo que se instalaria na meia-idade. Hoje Eu Venci o Câncer tem também bom humor – David recorda, divertido, a absurda “noite dos 600 chopes” que marcou a festa de aniversário de um de seus melhores amigos.
– Tive de ficar me equilibrando para não ser uma coisa piegas, para não ser uma história que não interessasse a ninguém e que só interessasse às pessoas que eu conheço, para que fosse uma história que levasse alguma coisa da minha experiência, para que mesmo aquele que nunca teve contato com alguém que tenha tido câncer, que nunca tenha estado doente, que sorvesse daquilo que eu estava escrevendo alguma coisa que lhe interessasse. E, ao mesmo tempo, fazer um livro agradável de ler, que fosse uma coisa engraçada – explica.
Crônicas publicadas à época de episódios emblemáticos de seu drama particular são introduzidas na narrativa para que o leitor possa avaliar como David estava por trás das linhas de seus textos. Buscar esses registros e relê-los, conta o escritor, o fez reencontrar as sensações do passado: “De certa forma, essas crônicas são o meu diário. Quando as releio, sei o que senti. E sinto de novo”. Quando se descobriu com câncer e chegou a desmaiar “de horror, de medo, de antecipação do sofrimento”, David tinha de produzir para ZH um texto leve para a edição de domingo. Em casa, horas antes de decidir se submeter a uma operação para retirada completa do rim já no dia seguinte, redigiu O que o Homem Gosta na Mulher. Falou de beleza, características de personalidade e atrizes famosas, como Ava Gardner, Mae West e Sharon Stone. Desta última, reproduziu uma frase: “O humor é uma forma de ser valente”.
O jornalista passou por diversas terapias no Brasil antes de sua única chance de continuar vivo se apresentar: mudar-se para os Estados Unidos e receber uma combinação de duas imunoterapias (medicamentos que ativam o sistema imunológico para combater o câncer), participando de um estudo clínico promissor, cobiçado como a salvação por pacientes do mundo inteiro. Não queria ir, mas teve de partir. Desembarcou na Nova Inglaterra muito debilitado, semanas antes da chegada da esposa, a arquiteta Marcia Camara, e do filho.
Me sinto inteiro. Estou vivendo tão bem quanto eu vivia antes de descobrir que tinha câncer. Estou fazendo as coisas que quero fazer. Claro que estando aqui sinto falta dos amigos, mas a gente não pode ter tudo, né? Nunca se tem tudo
DAVID COIMBRA
Jornalista
– Foram 40 e poucos dias em que fiquei sozinho, com dor, não conseguia caminhar direito. Suava de tanta dor que sentia. Com um inglês precário, tive de alugar apartamento, comprar telefone celular, fazer toda a burocracia para estabelecer uma vida – enumera. – Quando falei com o cara da imobiliária por telefone, o cansaço que senti depois que desliguei era uma coisa impressionante – lembra, rindo.
David destaca que uma das piores coisas de se estar na situação pela qual passou – e ainda enfrenta – é lidar com a falta de certezas. Algumas decisões, quando havia desacordo entre médicos ou desconfiava da eficácia de determinado procedimento, ele tomou por conta própria – a intuição, a inteligência e a própria experiência, argumenta, foram aliadas em
mais de uma ocasião.
– Teve um momento em que sentei na frente do médico e ele disse: “Vamos operar essas metástases”. Eu disse: “Não”. A Marcinha: “Tá louco? Você tem que fazer o que o médico está mandando”. “Não vou operar.” E eu estava certo – exemplifica. – Você tem que tomar decisões que são literalmente de vida ou morte e você não sabe (o que fazer). Tomei decisões por mim, paciência. Era o meu que estava na reta.
Quando a administração das drogas experimentais nos EUA começou a dar certo, o livro teve uma alteração de tom. Continuar vivendo parecia ser possível. A mudança radical que a doença impôs à rotina de David, Bernardo, agora com 10 anos, e Marcia acabou por aproximar a família ainda mais. Hoje, o jornalista, que segue em acompanhamento médico, diz estar muito bem.
– Me sinto inteiro. Estou vivendo tão bem quanto eu vivia antes de descobrir que tinha câncer. Estou fazendo as coisas que quero fazer. Claro que estando aqui sinto falta dos amigos, mas a gente não pode ter tudo, né? Nunca se tem tudo.
Trechos do livro "Hoje Eu Venci o Câncer"
"Quando cheguei ao hospital, minha mulher, a Marcinha, e minha irmã, a Silvia, já me aguardavam no saguão. Havia alguma burocracia a resolver.
Que sensação, essa. Você levou um xeque-mate, você não está numa situação-limite, porque o limite já foi ultrapassado: você já se deu mal. E, ainda assim, tem de assinar papéis, mostrar documentos, conversar civilizadamente com as outras pessoas sobre o tempo. Que tempo? Que calor? Que frio? Eu vou morrer, cara! Me deixa sair daqui, vão todos à merda, vou agora fazer o que tem de ser feito, o que já deveria ter feito, o que eu quiser fazer, sem hipocrisias, sem freios, sem me importar com nada, eu vou... eu vou... Vou o que mesmo? Vou assinar esse papel aqui. Não tem saída. Xeque-mate.
Está muito quente hoje."
"Quando a Marcinha e o Bernardo enfim chegaram, senti uma alegria que não vou esquecer. Era como se as coisas estivessem entrando no seu devido lugar. E, de certa forma, estavam mesmo. Principalmente porque, depois da terceira infusão da droga imunoterápica, as dores haviam diminuído bastante. Naquele domingo, eu já conseguia caminhar, uma grande vitória. E uma grande esperança."
"A felicidade é simples. Um dia bem vivido, sem dores físicas importantes, em que você agiu com correção e que termina em paz é um dia plenamente feliz. É um dia vitorioso. Você dizer para si mesmo: ‘Hoje, até o câncer eu venci’.
Quantos dias mais me cabem? Não sei. Felizmente não sei. Mas, sejam quantos forem, o que espero deles é poder terminá-los olhando o sol que se põe, talvez sorrindo para alguém que amo, talvez fazendo um brinde à vida, ou apenas dizendo para mim mesmo: tem sido bom."
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