O check-up de rotina, com exames para verificar os níveis de colesterol e glicose, poderá, em um futuro próximo, incluir a busca por células com DNA alterado. A partir de amostras de sangue ou de urina, será possível investigar a existência de células tumorais no organismo. A chamada biópsia líquida, que evita procedimentos invasivos e complexos, representa uma das revoluções em curso no combate ao câncer: antecipando-se o diagnóstico – que poderá ocorrer antes mesmo que a lesão apareça – e o início do tratamento, aumentam as chances de sucesso. Em escala reduzida, a técnica está em uso com pessoas que já tiveram câncer – uma eventual volta é detectada precocemente.
O tema esteve na pauta do Congresso da Sociedade Americana de Oncologia Clínica, em Chicago, um dos mais importantes do mundo, realizado em junho. Sergio Roithmann, chefe do Serviço de Oncologia do Hospital Moinhos de Vento e professor da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA), retornou otimista do evento:
– Em dois a cinco anos, já vamos começar a acompanhar pacientes assim.
Graças aos avanços científicos, especialistas têm se aprofundado cada vez mais na compreensão da enfermidade que se subdivide em mais de cem tipos e se mostra como um dos maiores desafios da medicina: a Organização Mundial da Saúde (OMS) prevê um aumento de 70% no número de novos casos de câncer ao longo das próximas duas décadas. Desvendar o perfil dos tumores e combatê-los com medicamentos que miram mutações moleculares e genéticas específicas constitui parcela significativa do progresso verificado até aqui – as chamadas terapias-alvo ganharam força a partir dos anos 2000. Essa personalização das ações de luta contra a doença, destaca o oncologista Carlos Barrios, tende a se intensificar no futuro.
– Escolhemos o tratamento de forma mais inteligente. Não tratamos todo mundo como se todos tivessem a mesma doença – explica Barrios, diretor do Hospital do Câncer Mãe de Deus e professor da Faculdade de Medicina da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).
Entre as terapias-alvo, a imunoterapia é considerada uma das abordagens mais promissoras. Ela é aplicada nos casos em que os tumores se desenvolvem devido a uma falha do sistema imunológico (ou quando o próprio tumor provoca esse defeito), com a função de tentar "acordá-lo" – o foco, em vez de mirar o câncer, é reabilitar as defesas do organismo para que cumpram o seu papel original. Até o momento, pacientes com câncer de pele (melanoma), pulmão, rim e bexiga têm alcançado bons resultados, mas essa terapêutica ainda não pode ser empregada contra todos os tumores.
– Tem que ter um pouco de calma – aconselha Roithmann. – É um avanço descobrir os mecanismos pelos quais a célula cancerosa foge dos nossos sistemas de defesa e como fazer com que nossos linfócitos consigam voltar a ficar mais ativos, mas ainda não sabemos selecionar os casos em que isso realmente funciona. Tem um aprendizado enorme pela frente – completa.
Redução dos efeitos colaterais ainda é desafio
Compreender melhor os mecanismos de resistência da doença (leia mais abaixo) e aprimorar a combinação de estratégias de tratamento também são tarefas que se apresentam. Barrios cita o exemplo de um paciente com câncer de pulmão a quem são prescritos dois agentes imunoterápicos ao mesmo tempo: suas chances de ter uma sobrevida maior se aproximam de 50%, mais do que o dobro do percentual oferecido pela terapia com um único imunoterápico (20% de chance de uma sobrevida mais longa). O ônus de associações desse tipo está relacionado ao aumento da toxicidade: elevando-se a quantidade de medicação, crescem os efeitos adversos.
– O nosso desafio é poder combinar tratamentos e ter mais eficácia, mas com uma toxicidade que seja razoável – afirma Barrios.
Quimioterapia, radioterapia e cirurgia, os tratamentos oncológicos tradicionais, também tendem a continuar sendo aperfeiçoados para que se tornem cada vez mais precisos, permitindo a preservação de funções e o aumento da qualidade de vida dos pacientes. No caso da radioterapia, máquinas modernas já permitem a irradiação de áreas menores. Quanto à cirurgia, as intervenções realizadas nas mamas atualmente evoluíram muito em relação às do passado, bem mais mutiladoras.
– O tratamento, que era muito assustador, mudou radicalmente e vai continuar mudando – afirma Roithmann. – Hoje em dia encontramos na rua, no nosso lado, muitas pessoas curadas do câncer. Nos EUA, de cada quatro pessoas diagnosticadas, três vão ficar curadas. Teremos que desenvolver tratamentos com menos efeitos colaterais e deixar menos sequelas.
O futuro do tratamento do câncer passa por aqui
TERAPIAS-ALVO
São medicamentos desenvolvidos para grupos de pacientes com características semelhantes entre si. Em geral, trata-se de uma mutação genética ou molecular – a terapia-alvo mira exatamente nessa anormalidade, daí o nome (a quimioterapia, por sua vez, ataca as células de forma indiscriminada). O tratamento pode impedir a progressão do câncer, fazer com que regrida ou até alcançar a cura. Existe também o risco de que o tumor não responda. Há medicações administradas na forma de comprimidos e outras aplicadas no hospital.
A primeira droga realmente eficaz nessa frente de pesquisas, que se desenvolveu enormemente a partir dos anos 2000, foi o mesilato de imatinibe, indicado para a leucemia mieloide crônica. A tendência é de que as terapias-alvo continuem avançando, rumo a uma individualização cada vez maior dos tratamentos.
IMUNOTERAPIA
Também considerada uma terapia-alvo, a imunoterapia tem uma diferença fundamental: o foco do tratamento, em vez do tumor, é o sistema imunológico, que permitiu o desenvolvimento do câncer por apresentar alguma falha. Quando os processos de defesa se normalizam, podem ser capazes de conter o avanço da doença.
Lançado pelo governo americano, o Moonshot 2020 (referência ao programa Apollo, que levou o homem à Lua na década de 1960), iniciativa ambiciosa que reúne laboratórios farmacêuticos, financiadores, médicos e acadêmicos, deve injetar US$ 1 bilhão na pesquisa de imunoterapias com o objetivo de transformar o setor.
O megaprojeto prevê o sequenciamento genético de 100 mil pacientes, investigando um total de 20 tipos de câncer, para o desenvolvimento de vacinas e outras terapêuticas.
SUPERLINFÓCITOS
Dentro da área da imunoterapia, outro experimento que pode dar origem à futura vacina anticâncer está relacionado à superativação dos linfócitos, que integram o nosso sistema de defesa. Coletadas do próprio paciente, essas células são modificadas e depois reinjetadas de volta. Chamados de CAR T, os superlinfócitos vêm sendo utilizados com sucesso, nos Estados Unidos, em experimentos de combate a leucemias e linfomas. O próximo objetivo é aprimorar essa investida para que seja possível também aniquilar tumores sólidos, como os de mama, pâncreas e intestino.
VENCER MECANISMOS DE RESISTÊNCIA
Complexo e altamente mutável, o câncer se torna ainda mais desafiador nas recidivas. Os médicos tratam o tumor inicial e, quando a doença volta, já apresenta novas características – a enfermidade não pode, portanto, ser atacada da mesma forma. Com mais estudos, a definição do segundo ou do terceiro tratamento se tornará mais eficiente: depois de observar a mutação responsável pela resistência, o médico escolherá a terapia de forma mais inteligente.
BIÓPSIA LÍQUIDA
Um teste genético simples, a partir de uma coleta de sangue, permitirá identificar a presença de células tumorais ou de DNA tumoral. Evitando intervenções mais invasivas (como as incisões para a retirada de um fragmento de pulmão, por exemplo), a biópsia líquida será importante para o diagnóstico e o tratamento precoces, além de facilitar a escolha das terapias mais eficazes quando ocorrerem recidivas. Os médicos poderão começar a agir antes mesmo da manifestação clínica dos sintomas. Será uma arma importante para vencer os mecanismos de resistência: no caso de uma paciente com carcinoma de mama que está reagindo bem ao tratamento, o teste indicará se não há uma dificuldade prestes a se manifestar.
ACESSO A PESQUISAS
Entraves burocráticos ainda impedem que se desenvolvam mais estudos com novas drogas, especialmente no Brasil. O receio de se voluntariar como cobaia também impede que mais e mais pessoas tenham acesso a remédios de ponta. Para Carlos Barrios, a possibilidade de participar de pesquisas deve ser um assunto obrigatório nas conversas entre médicos e pacientes: quanto mais cedo o doente tiver acesso ao tratamento, mais rapidamente poderá se aproveitar dos eventuais benefícios. Os experimentos científicos, ressalta o oncologista, são democráticos, podendo acolher pacientes das redes pública e privada:
– A pesquisa pode ser vista como um convênio que dá acesso ao melhor tratamento possível.