O câncer pode, como às vezes é o caso, se manifestar de duas formas. Foi o que aconteceu com a juíza da Suprema Corte norte-americana, Ruth Bader Ginsburg, que se curou de um câncer no cólon, em 1999, e teve a versão pancreática, em 2011. Se não fosse pelos check-ups regulares que teve que fazer por causa do primeiro, é provável que jamais o segundo, raramente detectado nos estágios iniciais, fosse descoberto enquanto ainda tinha chances de ser curável.
Dependendo da idade, até um em quatro sobreviventes, mais cedo ou mais tarde, tem grandes chances de desenvolver um segundo tipo da doença que não é nem recorrência, nem expansão do original; mesmo assim, são muitos os que não se aproveitam dos métodos eficientes que existem para evitar um futuro câncer ou tomar medidas que detectem uma nova variedade quando ainda pode ser tratada e curada.
A questão é crucial, pois a população em risco é enorme e não para de crescer. Como resultado de melhor detecção, tratamento e envelhecimento contínuo da população, o número de sobreviventes do câncer quadruplicou nos últimos 30 anos nos EUA, chegando a 15,5 milhões em 2016. Espera-se que esse número supere os 26 milhões em 2040.
Embora pareça contraditório, quem passou por um tratamento bem-sucedido de câncer de mama ou pulmão no estágio inicial tem mais chances de viver mais que alguém que nunca teve a doença, o que lhes dá mais tempo para desenvolver um segundo tipo de câncer.
Em relatório publicado recentemente na JAMA Oncology por pesquisadores do Centro Médico Southwestern da Universidade do Texas, em Dallas, aproximadamente 25% dos norte-americanos com mais de 65 anos e 11% dos jovens adultos que já tinham se tratado de um câncer, descobriram depois um ou mais tipos da doença em outro local. Dependendo da versão original e da idade, o risco de desenvolvimento de um segundo câncer não relacionado ao primeiro varia de 3,5% a 36,9%. O estudo abordou 765.843 diagnósticos novos feitos entre 2009 e 2013 que constam do registro nacional com base populacional, o programa Resultados Finais de Epidemiologia e Vigilância (SEER).
Em diversos casos, o surgimento de um segundo câncer foi resultado dos mesmos fatores de risco que muito provavelmente geraram o primeiro, e incluem o fumo, a obesidade e a infecção pelo papilomavírus humano (HPV). Por exemplo, um fumante que tenha tido sucesso no tratamento de um câncer no pulmão, pode mais tarde desenvolver outro na bexiga, que também está relacionado ao consumo de cigarros, ou uma recorrência no mesmo órgão. Uma infecção HPV, que quase sempre causa um câncer cervical, também pode afetar a vagina, o pênis, o reto e a garganta. Já se sabe que a obesidade é fator de risco para pelo menos treze tipos de câncer, incluindo de útero, esôfago, estômago, fígado, rim, cólon e pâncreas.
Embora muito menos comum hoje em dia, às vezes a quimio/radioterapia para controle do primeiro câncer podem causar mudanças, inclusive genéticas, que levam ao aparecimento do segundo. Entre os exemplos, está a leucemia e o câncer uterino em decorrência do uso do tamoxifeno recomendado para o tratamento do câncer de mama.
Os pesquisadores do Texas, liderados pela epidemiologista Caitlin C. Murphy, realizaram o estudo de surgimento de novos tipos de câncer em sobreviventes na esperança de mudar a prática comum de excluir esses pacientes de triagens clínicas quando desenvolvem outra forma do mal.
— Essa exclusão não é baseada em evidências. Os pacientes que já tiveram câncer não têm necessariamente um prognóstico pior do que o daqueles que não desenvolveram a doença. Deveriam poder participar das triagens, que podem ser inclusive uma das únicas opções de tratamento. Descartados, muitos deles ficam fora do que talvez seja a melhor terapia possível —disse Murphy em entrevista.
Para David E. Gerber, pesquisador especializado em câncer de pulmão e um dos autores do estudo, outra conclusão da análise é a importância de estimular os pacientes a eliminar ou reduzir os fatores de risco e seguir as recomendações de vigilância que podem alertar os médicos para o desenvolvimento de um novo câncer em um estágio inicial que possa ser curado.
Baseado no próprio trabalho, Gerber afirma que "entre aqueles que descobrem um câncer de pulmão no estágio 4, 15% têm histórico de um tumor anterior". Se tivessem sido informados sobre o risco de um novo desenvolvimento e monitorados adequadamente, talvez não tivessem a doença em fase tão avançada, raramente curável. E se tivessem parado de fumar após o primeiro diagnóstico, o risco de enfrentar um novo câncer no mesmo órgão teria diminuído 90 por cento.
Nancy E. Davidson, responsável pelos comentários que acompanham o trabalho, disse que há diretrizes baseadas em evidências para monitoramento dos pacientes que sobreviveram ao câncer de mama, pulmão e cólon.
— Só porque o indivíduo se curou de um câncer não significa que não esteja arriscado a desenvolver outro. Existe um guia de acompanhamento para sobreviventes, baseado na idade e no diagnóstico anterior. Cada intervenção deve ser adequada às necessidades particulares para que a pessoa seja poupada de exames desnecessários — explicou a especialista do Centro de Pesquisa do Câncer Fred Hutchinson, em Seattle.
Ela também enfatizou a importância de alertar os sobreviventes sobre os cuidados com a saúde em geral.
—O paciente sobrevive ao câncer, mas isso não quer dizer que não possa ter uma doença cardíaca, hipertensão ou diabetes.
Em um estudo anterior com 42 sobreviventes de câncer de mama e próstata em estágio inicial, a socióloga médica do Instituto do Câncer de Nova Jersey, Shawna V. Hudson, e sua equipe, registraram no periódico Annals of Family Medicine:
— Cerca de 70% dos sobreviventes do câncer apresentam condições que exigem um cuidado abrangente e contínuo. O acompanhamento dessas pessoas exige mais do que apenas a vigilância em nome da recorrência.
Depois de cinco anos de sobrevivência, apenas um terço dos sobreviventes continua a ser acompanhado por especialistas em relação ao câncer original, como descobriram os pesquisadores do Centro de Controle e Prevenção de Doenças.
Segundo o grupo de trabalho de Hudson, é muito comum que, depois de terminado o tratamento contra a doença, o sobrevivente não receba o cuidado apropriado de seus médicos. Segundo eles, o paciente precisa "compreender como funciona o acompanhamento pós-tratamento, o fato de ser contínuo e os vários graus em que se desenvolve". Muitos participantes de seu estudo, inclusive, não sabiam que o tratamento subsequente vai além da verificação de recorrência.
Por Jane E. Brody