Hoje Eu Venci o Câncer nasceu para contemplar a vontade de deixar sua história escrita para o seu filho, Bernardo, quando a morte parecia iminente. O que você queria que ele soubesse?
Meu pai foi embora quando eu tinha oito anos. Você acaba lembrando de poucas coisas do seu pai, você é muito pequeno. A sua memória fica muito esgarçada da imagem real de como era mesmo aquela pessoa. Então, pensei: vou deixar uma coisa a mais, para que meu filho saiba quem eu fui, o que eu penso, o que eu queria dizer para ele. Sobretudo, tinha uma coisa importante para passar para ele: a vida é boa. Isso é importante. Acho que tem que tentar passar isso para o seu filho, que a vida é boa, que tem que tentar fazer as coisas de um jeito certo.
Como foi viver com a perspectiva de ter pouco tempo de vida pela frente? Era um pensamento constante na sua cabeça?
Claro que é uma espada que está sempre em cima da sua cabeça. Todo mundo vai morrer um dia, né? Provavelmente, você morre ou de doença, ou de tiro, ou de acidente. Não tem outra possibilidade, a não ser que você morra de velho. Então, vai chegar um dia em que você vai descobrir a doença que vai matá-lo. Você pode descobrir com 50 anos, pode descobrir com 20, pode descobrir com 70, pode descobrir com cem, mas um dia você vai descobrir a doença que vai matá-lo. Então, você tem que trabalhar com isso.
É uma coisa natural, é uma coisa da vida, é assim que é, é a regra da vida. Se você ficar se impacientando, se preocupando, você vai prejudicar o seu dia. Tem que saber trabalhar com isso, com o dia de hoje, com as coisas que estão acontecendo hoje, e não com um futuro que você não sabe que vai existir, que ninguém sabe. O que trabalhei na minha cabeça foi o seguinte: primeiro, é importante viver o seu dia e não ficar ansioso com o que possa acontecer. E, em segundo lugar, trabalhar para que o melhor possa acontecer.
A minha ideia sempre foi a seguinte: tenho de fazer o máximo que eu puder para continuar vivo e para que as coisas deem certo. Se eu estiver fazendo o máximo que puder, se estiver fazendo o ideal, aí estou contente. O que eu não posso é ficar pensando “meu Deus, tô morrendo”. Posso morrer, mas posso também não morrer. Se eu fizer o máximo que puder, se fizer o ideal, daqui a pouco eu reverto a situação. De certa forma, reverti.
Você fala algo interessante: “Você não é necessariamente culpado pelas coisas ruins que lhe acontecem, nem necessariamente merecedor das boas”.
A pergunta “Por que isso está acontecendo comigo?”, eu nunca me fiz. Se você for ver as desgraças que tem no mundo, inúmeras... Gente completamente inocente, criança na Síria que está sem perna, gente que fica cega, criança que perde os pais... São pessoas completamente inocentes que estão sofrendo muito, muito mais do que eu sofri ou posso sofrer. Ao mesmo tempo, você vê gente que tem coisas maravilhosas na vida e às vezes são uns canalhas (risos). Você olha o cara ali, vivendo uma bela de uma vida, e outras pessoas gostando daquela pessoa. É mais ou menos claro para a humanidade que as coisas não acontecem por merecimento.
Claro que, quando você faz alguma coisa, trabalha para aquilo, vai ter um resultado, mas uma coisa fortuita não acontece com você por merecimento, acontece porque é fortuita. Sempre tem aquela história do cara que não entrou quando cai um avião: “Foi Deus que me tirou desse avião!”. E os outros que morreram? Morreram porque Deus queria que morressem? Era só ele que Deus não queria que morresse? Não é assim que funciona. Você tem que se cuidar para que as coisas ruins não aconteçam com você e para que aconteçam coisas boas. Essa é a sua tarefa. Mas não quer dizer que você vai conseguir.
Você constrói o seu passado a cada dia, não o seu futuro. Se você faz coisas legais no seu dia, você está construindo coisas legais que vai deixar de reserva lá, guardadas no seu passado. As coisas boas e ruins que você fez vão transformá-lo naquilo que você é, um ser humano bom ou ruim
DAVID COIMBRA
Jornalista
As pessoas sempre lhe perguntam o que você aprendeu com a experiência de ter tido um câncer e quase morrer. Está no livro, mas gostaria que repetisse aqui.
Já vi outras pessoas que tiveram câncer falando: “Eu aprendi”. Parece também que é o destino que fez com que ela tivesse aquele negócio ali para aprender alguma coisa. Eu prefiro não aprender nada! Me deixa sem essas merdas todas e eu não aprendo nada. Em segundo lugar, é exatamente o título do livro, “hoje”. Você constrói o seu passado a cada dia, não o seu futuro. Se você faz coisas legais no seu dia, você está construindo coisas legais que vai deixar de reserva lá, guardadas no seu passado. As coisas boas e ruins que você fez vão transformá-lo naquilo que você é, um ser humano bom ou ruim.
Sempre penso que tenho que construir o meu passado. A cada dia, melhorar o meu passado fazendo coisas legais, tratando bem as pessoas, fazendo a coisa com honestidade, a coisa que acho que é certa, me cuidando e cuidando dos outros também, sendo verdadeiro diante de todas as circunstâncias da vida. Isso você aprende. Não adianta ficar pensando: “Será que vou estar vivo daqui a 10 anos, 15 anos, dois anos, 50 anos?”. Você tem que pensar que está vivo hoje e que hoje tem a obrigação de construir coisas boas para o seu passado, para a história que está construindo.
Como se vive com câncer?
Tem circunstâncias que você tem de enfrentar na vida. Eu tenho miopia há muitos anos. Tenho que usar óculos, lentes de contato. É uma circunstância da vida. Você vai envelhecendo e tem uma dor aqui – é uma circunstância. Tem de lidar com elas, podem ser mais graves ou menos graves. É certo que sempre vai ter alguém pior do que você. Tem que entender que são circunstâncias e não fazer com que isso o domine, torne sua vida subalterna a essa condição. Porque senão você não vai viver.
Como você se sente hoje?
Me sinto muito bem. Me sinto inteiro. Estou vivendo tão bem quanto eu vivia antes de descobrir que tinha câncer. Não tenho nenhuma restrição, ao contrário, e ainda com a vantagem de que, ao ter vindo para cá, eu, a Marcinha e o Bernardo ficamos muito mais próximos. Ficamos dependendo muito um do outro, isso nos fortaleceu, acabou sendo bom. E me deu uma segurança de certas coisas, de como eu quero viver a vida. Me sinto muito mais leve. Estou fazendo as coisas que quero fazer, escrevendo o que eu gosto. Claro que estando aqui sinto falta dos amigos, mas a gente não pode ter tudo, né? Nunca se tem tudo.
O seu bom humor e a sua leveza certamente o ajudaram. Uma pessoa mais negativa talvez tivesse mais dificuldade para lidar com tudo isso.
Hoje mesmo (na manhã do dia 21), levando meu filho para a escola, eu estava dizendo isso para ele: as coisas ruins e as coisas boas, você pode fazer com que elas cresçam ou diminuam, depende de você. Se você pega uma coisa ruim e a cultiva, um pensamento ruim, uma experiência ruim, se você cultiva aquilo, aquilo vai crescendo dentro de você, e todo o seu ambiente vai ficando ruim. Não por energias ou algo sobrenatural. As pessoas vão ver que você está chateado, vão tratá-lo de uma forma diferente, aí você reage... é tudo um encadeamento de coisas. Se você continua pensando e cultivando, aquilo vai aumentando.
Se você rir, o seu espírito se alivia. Ao mesmo tempo, uma coisa boa, se você vai pensando naquilo, aumentando aquilo, fazendo com que aquilo seja mais importante para você, aquilo vai influenciando mais a sua vida. Você vai ficando mais leve, e as coisas vão ficando mais fáceis. As pessoas vão olhar para você com mais leveza. Encarar a vida de um jeito corajoso ou covarde, isso cresce. Depende de você.
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