Um dos cardeais mais próximos do papa Francisco, dom Cláudio Hummes também recebeu do chefe da Igreja Católica a difícil missão de conduzir atividades no Sínodo da Amazônia. Recém chegado de Roma, dom Cláudio diz que, apesar das polêmicas, o evento “foi muito exitoso”. Nesta entrevista, concedida por telefone direto de São Paulo, ele fala das recomendações da Igreja para o meio ambiente, a ordenação dos homens casados e a relação com Francisco. Conta, inclusive, um episódio histórico do último conclave.
Que lições pode-se tirar do Sínodo da Amazônia?
O Sínodo foi um êxito muito grande, teve resultados ótimos. Claro que ainda não definitivos, porque tudo isso é entregue ao papa Francisco, ele é quem vai analisar o que foi proposto e aprovado e ver o que é possível de ser assumido. Ele deve dar a palavra final até o final do ano. Nunca um Sínodo havia sido tão preparado como esse da Amazônia. Foram dois anos de consulta da base em que ouvimos todas as comunidades, as dioceses, as missões, os povos indígenas e ribeirinhos. No final, a Rede Eclesial Pan-Amazônica (Repam), da qual sou presidente, tinha contatado diretamente mais de 80 mil pessoas. Isso deu força de amostragem real do que está sendo o grande sofrimento e os grandes problemas, seja da Amazônia, seja dos direitos dos povos indígenas e ribeirinhos contra projetos dos colonizadores que pretendem se instalar e estão se instalando. Muitos que têm interesses grandes, ali na Amazônia, claro que começaram a criticar. Tudo que foi apresentado foi aprovado com mais de dois terços dos votos.
Como o senhor avalia a reação do governo brasileiro ao Sínodo?
Sei que fizeram essas críticas. Ainda há contestações da parte de governos e do poder econômico organizado, do agronegócio, de grandes empresários, existe ainda muita resistência, mas nem todos, porque muitos já se sentem corresponsáveis no mundo por essas regiões, e começam a ter posição mais sustentável. Inicialmente, houve da parte do nosso governo espécie de denúncia de que o Sínodo estava pondo em risco a soberania nacional. Isso nunca esteve na pauta. Sempre se disse, claramente, que a soberania nacional dos nove países que têm a Amazônia é intocável. Isso não significa que não haja corresponsabilidades para com todas essas grandes questões ecológicas, climáticas e também de defesa dos povos indígenas.
O senhor chegou a defender a demarcação de terras indígenas.
Isso está claro na Constituição, o governo tem a obrigação de fazê-lo e foi feito muito pouco ultimamente. Ao contrário, houve até iniciativas que pareciam querer reverter certas decisões já tomadas.
O presidente Bolsonaro disse que, no governo dele, não haverá novas demarcações.
Mas anteriormente também. Praticamente nada foi feito no governo anterior. Defendemos a demarcação não só porque está na Constituição, mas é direito dos indígenas e, graças a Deus, a Constituição assumiu esse direito.
Como o senhor avalia quando o presidente Bolsonaro sugere que o indígena seja trazido para a cidade para ser “civilizado”?
É contra os Direitos Humanos. Não se pode pressionar indígenas para que venham para as cidades. Eles têm o direito de ir por iniciativa própria, e muitos vão. Governantes pouco investem para que eles possam ter vida digna em suas comunidades. Eles devem ter a condição de autodeterminar-se.
Quais riscos o Sínodo aponta?
São justamente por ser uma região disputada por todos aqueles que tentam fazer daquilo uma reserva a ser colonizada e explorada, e não reconhecem que aquela região tem papel muito importante na sustentabilidade do planeta. Não se pode tratar a Amazônia como qualquer outra região, ela é fundamental. Todo colonialismo deve ser superado. Ali ainda há muitas riquezas. Mas o que a ciência e todo mundo cada vez mais concordam é que a floresta em pé e a preservação poderão trazer muito mais riqueza para o país e para o mundo. São teses hoje confirmadas pela ciência e por todo o bom senso. Querer lucros imediatos ao menor custo possível: é isso que atrai tanta gente para lá, que quer de toda forma explorar. O grande risco dos povos originários é de que não se reconheça que eles são um patrimônio para a humanidade. Eles têm direito ao desenvolvimento, mas que eles conduzam. Devem ser sujeitos da sua história e não objeto de projetos colonialistas.
O parágrafo 11 do Sínodo prevê o ordenamento de homens casados. Que passo é esse que a Igreja está dando?
O que foi proposto e o Sínodo aprovou, com mais de dois terços dos votos, é o seguinte: por causa da falta dos sacramentos principais da vida cristã nas aldeias indígenas e outros recantos do interior das matas, sobretudo mais retiradas, ribeirinhos e outros, ali há poucos padres. Então, praticamente eles nunca têm grandes sacramentos, como a missa e confissão. É um prejuízo enorme para a vida cristã daquelas comunidades. Eles têm direito e a Igreja deve providenciar isso. Propõe-se que, nestas comunidades, fosse promovida a formação de diáconos permanentes casados. O diácono não pode celebrar missa, mas a proposta é de que ele exercesse o diaconato por um tempo para mostrar se pode ser ordenado padre. Dentre diáconos bem sucedidos, seriam escolhidos os que podem ser padres, mesmo sendo casados, tendo família. Agora, fica nas mãos do Papa, que vai decidir.
Poderia ser um passo para discutir o celibato na Igreja?
Isso não se sabe porque o Papa disse que o Sínodo não era para discutir os ministérios. Se isso um dia será feito, depende do futuro. Não foi nem proposto. Um ou outro até falou no Sínodo, mas não passou para discussão.
O senhor avalia que é o momento para discutir isso?
Não tenho parecer sobre isso. É a própria Igreja que tem de definir. A minha opinião não tem nenhum interesse. A questão da Amazônia, sim. É do meu parecer, concordo plenamente que o Papa dê essa exceção para a Amazônia.
É urgente que as nações tomem medidas em reações aos efeitos climáticos?
Exatamente. Em relação aos efeitos climáticos e ecológicos. Uma coisa é o clima e outra é o territorial, a devastação. Você pode ter o melhor clima, mas se você devasta a região acontece o mesmo desastre.
O papa Francisco tem sofrido pressão interna pelas suas posições mais progressistas.
É sinal de que ele está, de fato, pretendendo reformas grandes. E todas as reformas suscitam resistências, porque muitos têm medo do novo, que parece nos desalojar da segurança, alguns até em termos de poder e prestígio. Outros, de boa fé, resistem porque não estão entendendo bem os assuntos, mas podem aderir na medida em que vão entendendo. Os que têm medo de perder algo, é mais difícil.
A Igreja deve dar novos passos?
A Igreja deve trabalhar mais com as próprias bases e não de cima para baixo, querendo pastorear o povo, que tem de fazer parte desse caminho. A Igreja tem de escutar mais o povo e reconhecer que a população também tem o Espírito Santo e, portanto, pode nos ajudar a entender como viver o Evangelho hoje, neste mundo atual, com todos os problemas que há. A Igreja deve ser mais sinodal e menos piramidal. Aliás, o próprio Vaticano II já tinha falado que o povo de Deus é que é importante.
O senhor teria dito ao Papa para pensar nos pobres, o que motivou a escolha do nome Francisco. O senhor pode contar o episódio?
Não poderia contar porque é segredo do conclave, mas o Papa não está sujeito ao segredo. Já que ele contou (em encontro com jornalistas), é público. Ao se aproximar do número suficiente para ser eleito, eu estava ao lado dele, que estava meio aflito por causa da convergência de votação. Na hora em que teve votos suficientes, o abracei, dei um beijo no rosto e disse: “não esqueça dos pobres”. Isso mexeu muito com ele, no interior. Aí, lembrando dos pobres do mundo, ele pensou em São Francisco de Assis e escolheu o nome de Francisco.
Isso lhe traz satisfação?
Claro. Somos amigos há mais tempo, fomos cardeais juntos. Trabalhamos na 5ª Conferência Latino-Americana de Aparecida, ele era cardeal na Argentina, eu estava em Roma na época, mas vim para a conferência. Trabalhamos juntos na redação de documentos. A gente já se conhecia há mais tempo.