Teólogo e professor da PUCRS, o padre Erico Hammes é defensor da recomendação feita neste sábado (26) pelo Sínodo da Amazônia ao Papa Francisco, no Vaticano, para ordenar homens casados. Ele explica que essa medida não é novidade na Igreja Católica, embora não seja aplicada nas igrejas ocidentais. O celibato não é exigido nas igrejas de rito oriental.
— A Igreja Católica não é toda ela celibatária. A igreja ocidental é que tem essa restrição. O que não existe é casamento depois de ordenação. Essa ordenação de homens casos é uma opção disciplinar, de direito. Que agora o papa poderá permitir. Gera discussão porque muita gente ignora que esta é uma questão disciplinar — afirma.
Hammes entende que, em um contexto de falta de pessoas para serem ordenadas pela Igreja, a medida pode ser uma alternativa para aproximar o catolicismo, especialmente das comunidades isoladas.
A possibilidade de ordenação de homens casados seria uma forma da Igreja Católica se aproximar de comunidades, especialmente as isoladas?
A situação em geral é bastante séria pelo mundo todo. No Brasil, é historicamente grave a falta de clero. Na Amazônia, de fato não tem gente para ser ordenada e o celibato tem influência nisso. A ordenação de homens casados sozinha não resolve essas questões. É necessário também ter uma formação adequada. Mas abre uma possibilidade a mais de, pelo menos, aproximar a Igreja nessas comunidades onde existem pessoas com disposição. Com vocação de servir.
Como funcionaria isso na prática. Para ser ordenado, esse homem passaria por uma formação teológica?
Normalmente se espera que tenha uma formação teológica completa. Isso é uma questão a se implementar. Na Amazônia há vários centros de formação teológicos, onde seria possível formar essas pessoas. Esses centros inclusive tem a possibilidade de se deslocar para onde for necessário. A formação teológica dos celibatários não é uma coisa excelente no Brasil. Em algumas localidades do Interior, é bastante difícil. Então esse não pode ser um empecilho. Também se supõe que essa pessoa tem que ter uma vida íntegra, correta, assim como se espera do celibatário.
Na verdade, é uma recuperação da grande tradição da Igreja. No começo, não havia o celibato. A maioria dos apóstolos eram casados. Talvez não precise se falar de uma modernização.
E esses homens seriam escolhidos a partir dos grupos que já possuem aproximação com a Igreja?
Existe muita gente na Igreja trabalhando, como os diáconos, que são homens casados. Muitos, inclusive, possuem formação em teologia e colaboram na igreja. Então, se for da vontade dele e da família, poderá ser ordenado presbítero (sacerdote, padre). A esposa tem que dar a sua concordância. Não é uma coisa que alguém assume sozinho. Então a esposa é consultada e tem que dar o seu aval. Isso já vale para o diácono.
A ordenação permitirá que esses homens atuem de que forma?
O que muda em relação aos diáconos, por exemplo, é o tipo de serviço que se presta. O diaconado é originalmente para serviços de caridade. Quando ordenado presbítero, então poderá fazer o serviço sacramental inteiro, como a celebração da missa. Isso o diácono não faz. A unção de doentes, ouvir confissões, toda a parte sacramental e litúrgica.
Se isso não é novidade na Igreja Católica oriental, por que ainda é um tema polêmico? Pela ala mais conservadora da Igreja, é vista inclusive como uma possibilidade de tentar terminar com o celibato.
Atribuo isso a um certo ficcionismo. Assim como tem gente que acha que a missa tem que ser rezada em latim. Também existem pessoas que acham que o celibato é intocável. O celibato não se perde com a ordenação de homens casados. Todos que sentirem a vocação para o celibatário continuarão. Nas igrejas orientais, onde isso já existe, não há previsão de ordenação de bispos casados, por exemplo. Para ser bispo precisa ser celibatário. Pode até haver uma valorização do celibato. A Igreja hoje perde muitos candidatos a presbiterado por conta do celibato. Não são ordenados porque não se sentem em condições de celibato. Na medida em que se pode separar isso, o próprio celibato passa a ter um valor maior ainda. Tem significado especial.
O senhor entende que essas medidas podem ser uma forma de "modernizar" a Igreja Católica?
Se alguém for incendiar a casa de outra pessoa, todo mundo gritará contra. E, obviamente, será considerado pecado. Quando incendiamos uma floresta inteira, envenenamos os rios e destruímos o lençol freático, achamos que não tem problema porque dá dinheiro
Na verdade, é uma recuperação da grande tradição da Igreja. No começo, não havia o celibato. A maioria dos apóstolos eram casados. Talvez não precise se falar de uma modernização. É a recuperação de uma tradição que já existia e que existe em parte da Igreja. Diante da situação concreta hoje em que se encontra a Igreja, como a falta enorme de presbíteros em muitos lugares. Em contrapartida, há uma grande quantidade de pessoas formadas, que poderiam ser ordenadas. É apenas uma busca de recuperar uma tradição e dar conta de abrir a possibilidade de melhorar o atendimento de comunidades.
Outro ponto bastante discutido é a questão ambiental. O sínodo propõe a criação do pecado ecológico. Qual o seu entendimento sobre?
Se alguém for incendiar a casa de outra pessoa, todo mundo gritará contra. E, obviamente, será considerado pecado. Quando incendiamos uma floresta inteira, envenenamos os rios e destruímos o lençol freático, achamos que não tem problema porque dá dinheiro. O pecado ecológico já existe, mas as pessoas não levam a sério. Temos uma legislação civil contra esse tipo de ato, até mesmo no Brasil, que não é dos mais avançados no campo ambiental. Chamar de pecado é refletir ética e moralmente o que já existe. Não recebemos de Deus o poder para destruir a natureza. E sim de cuidar, cultivar. No fundo, estamos discutindo quem é o proprietário da natureza. Quem tem direito de usar e abusar dela. Tem crianças nascendo hoje. Podemos negar o futuro a elas. Temos responsabilidade sobre isso. Ela se traduz diante de Deus, na medida que significa a subtração do amor ao próximo.
De que forma esse reconhecimento por parte da Igreja pode impactar na prática?
É uma consciência que vai se colocando. Isso se traduz na medida em que vai capilarizando na catequese, na orientação, na formação. Vai gerando pequenos efeitos. Um agricultor que adere a uma consciência ecológica, e faz isso também do ponto de vista religioso, ele muda. São sinais que vão aparecendo para mudar o conjunto da sociedade.
De maneira geral, o senhor acredita que o relatório atendeu às expectativas?
Nunca se pode querer tudo, por exemplo, o avanço em relação às mulheres. Isso ficou a meio caminho. E vai levar um tempo ainda até que se possa pensar de outra forma. Existem estudos sólidos para isso. Existem iniciativas bem asseguradas, mas ainda há muita resistência. Eu diria até que um tabu em relação a esse assunto. É uma questão de que precisa de muita maturidade. Existem muitos bispos trabalhando nessa reflexão. Por outro lado, poderia ser mais equilibrado. Há muita resistência. Há posições que não são necessariamente só por virtude. Algumas resistências que se fazem a uma tentativa de melhorar o lugar da mulher na Igreja Católica.
A ordenação de homens casados pode ter impacto sobre o papel da mulher dentro da Igreja Católica?
No caso do homem ser ordenado, o papel da esposa dele vai ser crescentemente reconhecido. Certamente este é um caminho para melhorar o reconhecimento do papel que as mulheres têm na igreja. Hoje, o poder lhes é vetado. Não me aventuro a falar em nome das mulheres, elas é que tem que avaliar melhor as coisas. Mas acho que tem muita coisa para melhorar. Jesus, em um contexto que era eminentemente descriminatório contra mulheres, tomou atitudes de promoção. Estando à frente da sociedade e do seu tempo. Na sociedade hoje a mulher ainda tem papel secundário, frente ao protagonismo dos homens. A sociedade está atrasada. Mas a Igreja não pode se acomodar. Ela tem que estar à frente, em defesa do protagonismo da mulher. É uma questão de justiça. Se não faz, está faltando com o seu dever fundamental, evidente no exemplo dado pelo próprio Jesus Cristo.