Um dos principais teólogos do Rio Grande do Sul, o padre Erico Hammes trabalha no que pode ser o embrião da terceira encíclica do papa Francisco. Em novembro, o religioso esteve reunido com outros pesquisadores de vários continentes na De Paul University, em Chicago, para discutir um tema que tem preocupado o Pontífice: a questão da violência. Do debate e de estudos ainda em fase inicial deve sair ideias para o Papa escrever o documento.
— O Papa não faz uma encíclica sozinho. Esse papa, em especial, procura ouvir muitas vozes de lugares diferentes _ contou, por telefone, direto de Bochum, na Alemanha, onde participa de um seminário sobre justiça e misericórdia em Deus a partir da América Latina.
Doutor em Teologia e professor da Pontifícia Universidade do Rio Grande do Sul (PUCRS), Hammes explica que Francisco deseja uma ação mais concreta da Igreja para contribuir para a paz. Em manifestações recentes, o Papa tem se mostrado preocupado com questões como a onda de refugiados na Europa, as tensões envolvendo a Coreia do Norte e o novo ciclo de violência no Oriente Médio — diante do reconhecimento de Jerusalém como capital de Israel pelo presidente dos EUA, Donald Trump, Francisco afirmou:
— Rezo a Deus para que sua identidade seja preservada e fortalecida em benefício da Terra Santa, Oriente Médio e todo o mundo. E que a sabedoria e a prudência prevaleçam para evitar novos elementos de tensão em um contexto global já abalado por muitos conflitos cruéis.
Uma das ideias que Hammes tem compartilhado com colegas e que poderia contribuir para o documento papal seria um comprometimento dos católicos com a paz — passando, por exemplo, a constar até de uma declaração na crisma ou outros sacramentos, nos quais os fiéis deveriam se dizer como "homens de paz". Hammes acredita que, a partir das reuniões com o Pontifício Conselho de Justiça e Paz, órgão da Santa Sé, sairá, senão uma encíclica, pelo menos a organização de um sínodo de bispos em 2018. A seguir, trechos da entrevista:
Como este trabalho irá se transformar em uma encíclica?
É uma iniciativa do Pontifício Conselho de Justiça e Paz. Essa comissão está, há dois anos, reunindo pessoas para estudar o tema. A mensagem do papa Francisco de 1º de janeiro de 2017 já vinha com esse estilo: a temática da paz e da não violência. Ele pregava a não violência como um estilo de política internacional. Estive em Chicago para fazer uma leitura de toda a parte central da cristologia e sacramentos. Passamos dois dias na De Paul University, éramos 16 pesquisadores de todos os continentes, com exceção da Europa, que tem seu próprio grupo. Éramos dois da América Latina, um das Filipinas, outros África do Sul, da Nigéria, o núncio do Vaticano na Nicarágua e vários pesquisadores dos EUA. A partir daí, sairão algumas ideias. A intenção é continuar os debates em rede, aprofundando as temáticas.
Como foi receber o convite?
Tanto quanto eu sei, um colega do Rio de Janeiro, que tem contato com a Universidade De Paul, passou meu nome por conta dos meus trabalhos sobre teologia e paz. Provavelmente houve uma sondagem. A correspondência veio no sentido de fazer esses estudos. A informação que tínhamos em Chicago era de que a partir dessa discussão se geraia uma encíclica ou um sínodo. Há uma preocupação do Vaticano em garantir uma posição mais firme da Igreja Católica no tocante à paz internacional e à não violência. A minha pesquisa no Brasil é sobre questões de violência e o impacto nas comunidades. O Papa gostaria que essa questão fosse uma espécie de característica da atuação da Igreja no mundo. É uma de suas preocupações constantes. O que fizemos lá (em Chicago) foi algo que já faço na faculdade: tomar todo o estudo de cristologia e olhar isso do ponto de vista da relevância para as relações comunitárias e internacionais no sentido de uma postura, um posicionamento de quem aceita a fé cristã diante da situação de violência.
Já se falava em contribuir para escrever uma encíclica?
Na carta que veio já havia essa indicação. O Papa não faz uma encíclica sozinho. Esse papa, em especial, procura ouvir muitas vozes de lugares diferentes. Recebi a carta entre março e abril. Eles mandaram materiais, vídeos de reuniões em Roma, o que já havia sido discutido. Depois, cada um de nós teve seu próprio desenvolvimento com a temática. Nos EUA, há muito trabalho nesse sentido. A Igreja Católica americana tem uma longa prática na busca de paz, com atuação contra a corrida armamentista, nos anos 1980, e, depois, sobre a situação internacional, após a queda do Muro de Berlim.
Quando o senhor acredita que essa encíclica será publicada?
Não tenho muita segurança sobre isso, mas, pelo ritmo que as coisas tem de acontecer, o Papa completou 81 anos, se quiser fazer alguma coisa, deve ser logo, terá de ser no próximo ano. Ao longo de 2018, deve acontecer alguma coisa ou um aprofundamento. Em dois dias, não dá para fazer muita coisa. Agora, será necessário delegar trabalhos ou chamar outras pessoas. Houve uma espécie de divisão do trabalho: o pessoal da área bíblica, da questão moral, ética e das relações internacionais. Possivelmente, o pessoal da diplomacia do Vaticano terá de estudar essas questões.
Como adaptar o discurso da Igreja à questão do combate à violência?
Há um aspecto na Bíblia que é a questão da expulsão dos vendilhões do templo. Esse texto eventualmente é apresentado como uma ação de violência de Jesus. Isso não se sustenta do ponto de vista de pesquisa porque seria um ato isolado. Jesus não agride as pessoas, apenas trata de reordenar o templo para sua finalidade: ser uma casa de oração. De resto, há várias falas de Jesus em função da paz: as bem aventuranças, quando ele envia seus discípulos a pregarem a paz. No Evangelho de João, quando diz: "Eu lhes dou a paz, eu lhes deixo a paz". Depois, quando afirma "a paz esteja com vocês". Aí vem uma das características importantes: o perdão como resolução de conflito. Não significa que a pessoa não seja responsabilizada. Durante um assalto, situação a que estamos acostumados em Porto Alegre, é óbvio que alguém pode ter uma reação e matar o agressor. Mas não é essa reação que vai resolver o nosso problema. A prova também está nos EUA, que têm números de mortos (em situação de violência) semelhantes aos do Brasil. De um lado, as pessoas têm de ser responsabilizadas, de outro a sociedade deve cultivar e educar as pessoas vulneráveis para o valor da vida. Hoje, se mata por nada. A frase que muitos brasileiros gostam é: "bandido bom é bandido morto". Isso coloca em risco nós mesmos. A espiral de violência tem de ser parada. É preciso conhecermos uns aos outros, criarmos relações próximas.
E como isso pode se aplicar às relações internacionais?
Temos um mundo de violência. A palavra paz lembra situações de cooperação e de não agressão. É necessário que se busque soluções alternativas à força. A famosa expressão de Rui Barbosa, "o argumento da força não pode substituir a força do argumento". Aqui mesmo está havendo uma situação entre Alemanha e Turquia. Há jornalistas alemães presos na Turquia sem acusações. Ontem (quarta-feira), foi libertada uma jornalista, mas ela não pode deixar a Turquia. A diplomacia alemã vai negociando com o governo turco no sentido de dar pequenos passos, essa é a expressão do ministro das Relações Exteriores. É obvio que a Alemanha poderia fazer uma escalada de violência em relação a isso, mas prefere a prática da argumentação. Não é o que necessariamente acontece em relação à política americana. Não é um discurso de busca de construção de paz. É de intimidação, se pensamos no reconhecimento de Jerusalém como capital de Israel. É uma situação muito difícil, a decisão não foi precedida de boa discussão. Foi um ato isolado, muito mais de força. Fica difícil os EUA serem uma força de mediação. Se o Vaticano tomar uma posição de que a teologia católica terá na paz seu princípio interpretativo isso facilitará muitas coisas nas comunidades.
Mas, na prática, como a Igreja pode agir contra a violência e a favor da paz? Não ficando apenas nos discursos?
Estive em uma igreja menonita. Eles foram muito perseguidos no século 16. No Brasil, há um pequeno grupo, em Foz do Iguaçu. Nos EUA, quando há o ingresso de uma pessoa na congregação, uma das perguntas que fazem é se essa pessoa está disposta a renunciar à violência e ser promotora da paz. Se tomamos algo paralelo a nosso batismo, crisma ou primeira comunhão, por exemplo, caberia fazer essa pergunta: se a pessoa está disposta a ser uma pessoa de paz. Nunca deixaremos de ser violentos, mas, se tomarmos isso como critério, vou me comportar como uma pessoa de paz no trânsito, na economia, nas relações internacionais, e teremos uma possibilidade. A Campanha da Fraternidade, que está às portas, tem como tema a superação da violência. É uma oportunidade. Temos muita violência doméstica, de homens contra mulheres, pais contra filhos. Depois, tem toda a questão da violência social, escolar.
O senhor já se encontrou com o papa Francisco?
Sim, porque até julho eu estava em uma direção internacional de sociedades católicas de teologia. Tínhamos uma reunião e foi na casa Santa Marta. A gente se cruzou. Com Francisco não tem muita complicação ou cerimônia. Aquilo que todo mundo já aprendeu desde o começo, ele faz as refeições na casa Santa Maria, onde mora, junto com os hóspedes, no mesmo refeitório. Normalmente, ele tem um lugar reservado porque recebe visitas particulares para aproveitar a hora das refeições. Essa é uma das razões pelas quais ele é capaz de ouvir gente e busca se auxiliar das outras pessoas.
Quais são os próximos passos para o trabalho da encíclica?
Não há ainda uma reunião marcada. Acredito que o tempo é curto, uma vez que tivemos a reunião em novembro. Enviei para os EUA alguns textos a mais e sugeri que nos organizássemos como uma rede internacional acadêmica de pesquisa.