A bordo do navio quebra-gelo Akademik Tryoshnikov, a cerca de cem quilômetros da costa do continente gelado, próximo ao sul da Austrália, o professor gaúcho Jefferson Simões, da UFRGS, conta à coluna como está a Expedição Internacional de Circum-Navegação Costeira Antártica.
A viagem começou no porto de Rio Grande em 22 de novembro. Já são quase 30 dias de expedição. O glaciologista Simões, um dos maiores conhecedores da Antártica no mundo, coordena a expedição.
Leia os principais trechos da conversa, feita pela internet via satélite.
Como foi a travessia até a Antártica?
Nunca é tranquila, mas a gente não atravessou exatamente no Drake, porque fomos mais para o Leste. Viemos direto, tentando chegar às estações russa Novolazarevskaya e indiana Maitri. Foi o nosso primeiro ponto de parada: ali já deu pra fazer trabalhos. O mar congelado atenua as ondas. Os últimos dias têm sido, não vou dizer agradáveis, mas mais tranquilos.
O mar está mais congelado do que o habitual?
O que a gente sabia é que, em ano de El Niño, a extensão do mar congelado fica muito grande. Como está chegando o verão, esperamos que esse mar congelado diminua nos próximos 15 dias, quando nos aproximaremos do Mar de Ross, ao sul da Nova Zelândia. Por enquanto, a gente ainda está ao sul do Oceano Índico e marchando lentamente.
Onde vocês estão exatamente?
Ao sul do Oceano Índico, nos aproximando do sul da Austrália. Estamos indo direto para a maior geleira do mundo, com mais de 400 quilômetros de extensão. Faremos pesquisas perto dela.
O senhor já desceu do navio?
Até agora, descemos uma vez. Visitei as estações russa e indiana, que a gente chama de oásis porque é um lugar de rocha, pequeno, imagina 16 quilômetros por cinco no meio do gelo. O pessoal que ia fazer os trabalhos em alguns lagos e solos congelados desceu, mas a maioria, não. Isso cansa, o pessoal está louco pra baixar, como a gente diz, porque são agora três semanas de mar. O navio tem o potencial de entrar no gelo, mas aí a velocidade se reduz muito e come muito óleo. Então, estamos tentando evitar o máximo para chegar à estação, aí sim nós poderemos penetrar a gelo
Como é a rotina no navio, com tantos cientistas disputando laboratórios?
Esse é o problema principal. Tenho de lidar com essa divisão de tarefas. Como estamos no mar, o pessoal da oceanografia tem aproveitado muito. O da meteorologia lança seus balões (meteorológicos) de tempos em tempos. Esses projetos estão indo adiante, mas mesmo eles necessitam programação, horário, discussão com o capitão do navio. E, claro, sempre pode rolar um estress e eu, com coordenador, preciso gerenciar.
E as refeições?
Eu estava batendo um papo com o chef de cozinha aqui para fazer umas refeições mais brasileiras. Pedi para fazer feijão com arroz, e ele fez um feijão mais parecido com o mexicano (risos).
Churrasco nem pensar?
Não, mas a gente trouxe carne para fazer bifes. Ainda temos de negociar com o nosso chef de cozinha, que é russo. Então, é comida russa todos os dias. Volta e meia, ele está começando a entrar com algo diferenciado.
São quantos pesquisadores a bordo?
Estamos com 57 pesquisadores de sete países. Tornou-se uma missão praticamente dos Brics, mais os convidados da Argentina, Peru e Chile. Mas são os grandes dos Brics (Brasil, China, Índia, Rússia e África do Sul), que têm esse interesse em comum nessa circunavegação.
O que o senhor destaca em termos de pesquisa até agora com mais relevante?
Devido a essa extensão anômala do mar congelado, a visualização de animais está meio restrita. A gente só viu algumas focas, há poucas aves nos acompanhando, baleias, fooram duas ou três. Quer dizer, está muito difícil a observação. E a gente ainda está um pouco longe da costa, a mais de cem quilômetros. Um dos auges para nós será quando chegarmos próximo a colônias de pinguim-imperador, que eu nunca visitei. É um animal que vive em condições mais extremas aqui. Ele é o único que vive o inverno na Antártica.
E sobre mudanças climáticas?
Tem também toda a questão da circulação atmosférica. Para nós, brasileiros, vai ser muito importante quando chegarmos mais adiante. No mar de Amitz, onde surgem as frentes frias que dão origem aos ciclones extratopicais aí no extremo sul do Atlântico. Esse é o interesse que nós gaúchos temos. Nessa latitude, o que a gente vê é retração de geleiras, em termos de mudança do clima. Mas não é tão intenso quanto veremos ao chegarmos na Península Antártica, mais perto da Estação Antártica Comandante Ferraz. As modificações são muito mais rápidas, bruscas, e o sinal é mais claro das alterações climáticas.
Algo lhe surpreende ainda na Antártica?
Estou apostando ao chegarmos na frente desse enorme paredão, que é uma coisa espetacular. Nunca estive lá. Imagina um paredão de 50 metros acima do nível do mar e mais uns 300 para baixo. Eu gosto de brincar, dizendo que a visão de iceberg que o brasileiro tem é a do Titanic, que era algo irrisório em termos de tamanho. Na Antártica, é normal haver icebergs de 10 quilômetros por cinco - ou até maiores. É uma massa de gelo enorme. Essa parte da Antártica em que estamos é um lugar úmido e quente pra mim. A temperatura está ao redor de -2ºC e uma umidade de 80%.
O senhor está acostumado com temperaturas muito inferiores, no meio da Antártica?
Estou acostumado a -30ºC, - 40ºC. Principalmente, seco, com umidade de 10%.
Mas o senhor também não está acostumado a ficar tanto tempo no navio. A vida a bordo é pesada?
Isso é verdade, estou levando uma vida de marinheiro, com uma equipe internacional. Então, tu tens de lidar com línguas e culturas diferentes, evitar alguns assuntos... Mas todo mundo está tranquilo, dedicado à ciência. A intenção é aumentar essa cooperação com os institutos Ártico-Antártico de Rússia, China e Índia. É o que eu defendo: o Rio Grande do Sul tem de ser o centro da pesquisa polar brasileira. Não só pela proximidade geográfica da Antártica, mas também pelo que já formamos de pessoal especializado. Também devido a nossa sensibilidade às variações climáticas. Esse é um ponto que tenho insistido: o próprio desastre de maio está relacionado a processos antárticos.