Lembra de onde você passou o Ano-Novo? Ou da ceia de Natal na casa dos avós, do primeiro beijo? Nossas memórias mais recentes se criam quando parte do nosso cérebro chamada hipocampo agrega informações sensoriais – sons, cheiros – e percepções de tempo e espaço, estocando-as por um período. Quando as evocamos, podemos transformá-las em memórias mais estabelecidas – que duram anos. Isso é possível porque um grupo de neurônios se comunica com outro por um sinal elétrico.
Em pessoas com danos cerebrais, em que as memórias parecem perdidas, atualmente já é possível recriá-las – reproduzindo padrões de estímulos elétricos nessas áreas do cérebro. Isso é feito artificialmente, usando implantes no cérebro. Como a cirurgia é complicada, os estudos estão ou focando em pacientes com epilepsia, ou em veteranos de guerra com estresse pós-traumático, que se candidatam para testar os dispositivos, ainda experimentais. Nos soldados, estímulos elétricos podem alterar o humor, revertendo comportamentos de depressão ou isolamento.
Esses estudos são hoje financiados pelo governo dos EUA e usados até em militares na ativa, registrando suas atividades cerebrais, para poder reproduzi-las, artificialmente, mais tarde, usando computadores conectados aos implantes. Isso é realidade, não ficção científica.
A ficção científica é intrinsecamente subversiva, pois, ao apresentar realidades alternativas, nos leva a questionar o que acontece ao nosso redor. Embora use imagens futuristas, a boa ficção científica nos leva a pensar a natureza humana frente a mudanças causadas pela tecnologia. Hoje, ninguém faz isso melhor do que a série Black Mirror, da Netflix. Cada episódio traz uma fábula, que explora o que de pior pode acontecer com o advento de uma tecnologia que deveria nos maravilhar, como a descrita acima.
A nova temporada nos provoca sobre a possibilidade de acessar pelo computador, cotidianamente, pensamentos, memórias e percepções dos outros. Em um episódio, uma mãe aceita implantar, no cérebro da filha, um chip que pode acessar sua localização e fornecer imagens do que ela vê. Há ainda a opção para que a mãe bloqueie imagens que considere inapropriadas – de modo que a filha não consiga vê-las, embora aquilo ocorra na sua frente. Em outro episódio, uma investigadora de seguros para carros acessa memórias de quem possa ter testemunhado – mesmo sem lembrar – um acidente. Afinal, qual é o limite, e quem o decide?
O nome Black Mirror ("espelho negro") evoca as telas para as quais olhamos diariamente, centenas de vezes – celulares, computadores, TVs. Quantas vezes por dia vemos ali brevemente nossas faces, para rapidamente pular para realidades alternativas, registrar ou recordar eventos, conectar com entes queridos.
O apelo da série é nos mostrar um futuro logo ali, não daqui a milhares de anos.
Meu desejo para 2018 é que seu espelho negro reflita uma oportunidade para entender o papel que a tecnologia tem na sua vida. Que se interesse mais em conhecer como ela é desenvolvida, entendendo o trabalho dos cientistas. Assumir o comando do seu presente, buscando ativamente o conhecimento, é a única forma de evitar que decidam por você o seu futuro.