Escreve Domingos G, um leitor assíduo cuja primeira mensagem se perdeu nos desvãos do meu disco rígido: "Caro professor, há tempos mandei-lhe uma dúvida e não tive a satisfação de sua resposta. Fico me perguntando se enderecei corretamente a mensagem, de vez que, aos 85 anos, muito frequentemente me atrapalho com essa tecnologia digital. Ei-la novamente: por que a letra "S", entre uma consoante e uma vogal, em alguns casos soa diferente, como em compenSAção (/ça/) e tranSAção (/za/)?
Prezado Domingos, tocaste numa pequena mancha (melhor seria dizer manchinha) de nosso sistema ortográfico. O Português escrito aproveita a letra "S" de três maneiras básicas, ora representando o som /s/, ora representando o som /z/. São elas: (1) no início do vocábulo, sempre como /s/: sapato, sol, suco; (2) entre duas vogais, sempre como /z/: azar, azia, azeite (como dizia nosso professor de Matemática, quando íamos alegar distração ao fazer a prova); (3) depois de consoante, sempre como /s/: eclipse, absorvente, psicologia.
No entanto — e é aí que bate o ponto —, ao comparar imprensa, tenso, consolo ou prensado com transação, como apontaste, constamos que este último vocábulo foge ao terceiro princípio acima, pois nele a letra "S" excepcionalmente representa o som de /z/. Como aconteceu isso?
Como diz o nome, a ortografia rege a escrita — mas é súdita da pronúncia. O que vou dizer é uma supersimplificação do ponto de vista acadêmico, mas vai tornar mais clara a minha explicação: o prefixo trans- tem uma pronúncia sui generis, em relação aos padrões habituais de nosso idioma: quando ligado a uma vogal, ele sempre adquire o som /z/ (transar, trânsito, transamazônico, transumância), o que não ocorre, por outro lado, quando ligado a um radical que já começa por /s/ (transiberiano, transaariano).
Podes ver, assim, que nosso sistema ortográfico empacou numa daqueles terríveis encruzilhadas de que a vida é repleta: ou optava pela letra "Z" para corresponder exatamente ao fonema que pronunciamos — e neste caso escreveríamos pérolas como *tranzar, *tranzitório — ou, como terminou fazendo, mantinha mesmo a letra "S", embora com valor diverso daquele que ela costuma ter após consoantes. Assim, ao menos, conservou estável a grafia do prefixo, livrando-nos da necessidade de fazer as inevitáveis adaptações (*tranzatlântico e *tranzoceânico, mas transaariano e transônico).
O curioso é que algo semelhante ocorreu com obséquio e seus derivados (obsequioso, obsequiar, etc.), em que escrevemos "S" onde se diz /z/. Para um marciano recém-chegado que tivesse estudado Português por correspondência, obséquio e observar, que têm grafia idêntica, deveriam ter a mesma pronúncia — só que não. Para nós, contudo, falantes nativos, a pronúncia dessas palavras é instintiva; pior, muito pior é o caso da letra "X" entre vogais, cuja leitura deixa muita gente embaraçada, pois pode valer por /ch/ (caxumba), por /z/ (exato) ou /ks/ (conexão). Não deves, porém, caro Domingos, dar muita importância a essas pequenas incongruências. Um sistema que tem de se contentar com 23 (agora 26) letras e mais alguns acentinhos para representar mais de meio milhão de palavras, convenhamos, até que está se saindo muito bem.