Uma cautelosa leitora (não informa nome, nem cidade onde mora) escreve para se assegurar de que não está prestes a cometer, como ela própria diz, um "mico irremediável". "Há tantos anos frequentando o Facebook e o Instagram, terminei aprendendo que não se deve corrigir o que os outros escrevem sob pena de perder amizades de muitos anos. Agora, porém, não vou perdoar, pois se trata de um desafeto, um colega do mal, um ressentido que sempre que pode tenta me prejudicar. Tenho certeza de que ele cometeu um erro grosso de Português no artigo que acaba de publicar no jornal digital do nosso Instituto, mas quero conferir com o senhor antes de fazer um comentário no nosso fórum. Ele é vaidoso e acha que sabe muito; por isso, levaria uma lição e tanto! Sou formada em Administração, mas tenho certeza de que sei mais gramática do que ele, pois cheguei a cursar vários semestres de Letras e adquiri o hábito de recorrer sempre à gramática e ao dicionário, além de não perder uma só coluna do Prazer das Palavras. Me ajude, professor: ele escreveu "o porta-voz do governador conseguiu açular ainda mais o conflito com um artigo atrabiliário publicado na Folha de São Paulo" — o termo grifado está empregado corretamente?".
Cara leitora, em princípio eu diria que não — embora, como muitas vezes acontece, pode ser que ele tire do bolso do colete uma defesa para essa escolha. A tua sorte — e o azar dele — é que este já se tornou um caso clássico, inúmeras vezes discutido nos consultórios gramaticais da internet e aqui mesmo nesta coluna. É muito comum empregar um vocábulo com um sentido que ele não tem, ou confundi-lo com outro que nada tem a ver com ele, a não ser uma configuração sonora semelhante. Um bom exemplo é o par funâmbulo e sonâmbulo; não admira que usuários desavisados confundam essas duas proparoxítonas que, ainda por cima, formam uma rima perfeita. Uma volta às origens, contudo, evitaria trocar uma pela outra: funis, em Latim, quer dizer "corda", e enquanto o sonâmbulo caminha durante o sono, o funâmbulo é o artista que anda na corda bamba.
Pois atrabiliário vem de atrabílis ou atrabile (no Latim, literalmente “bile negra”; na Grécia, recebia o nome equivalente de melancolia, de mélas, “negro”, e kholê “bile”). Este era um dos quatro humores que definiam, segundo a medicina antiga, o temperamento do indivíduo (pois até hoje não falamos de bom humor?); os atrabiliários, pessoas em que predomina a atrabílis, seriam, portanto, "melancólicos", "hipocondríacos", "deprimidos", "taciturnos" ou até mesmo "irascíveis". Pergunta a teu colega, suavemente, em qual desses significados ele estava pensando quando usou atrabiliário. Nenhum deles? Ah, quem sabe então devesse ter escolhido melhor... Podia ter usado inflamado. Ou talvez atabalhoado? Atrapalhado, quem sabe? Quiçá autoritário? Qualquer coisa, menos atrabiliário. E bebe até a última gota o néctar do triunfo — mas com elegância...