Sem exagerar, são dezenas os leitores que, ao longo desses vinte anos de O Prazer das Palavras, pedem que eu puxe as orelhas de algum jornalista por erros — ou pretenso erros — que ele costuma cometer. Sinto muito, mas me repugna exercer este cargo de fiscal da linguagem dos outros, para o qual não fui nomeado. Porém, bem ao contrário, é com todo o prazer que defendo de críticas alguém que foi injustamente acusado por um desses zoilos (sempre quis usar esta palavra!).
Dessa vez a vítima foi conhecida apresentadora de uma rede nacional de TV: ao comentar a drástica redução do número de participantes da peregrinação a Meca neste ano de pandemia (apenas 60 mil, comparados aos dois milhões de 2019), ela chamou de Alcorão o livro sagrado do Islã — o que deixou indignado alguém que escreve de Florianópolis mas se assina Professor Capixaba: "Tenho notado a baixa formação desse pessoal da imprensa atual. Uma moça como essa [a apresentadora] não aprendeu na escola de Jornalismo que o nome oficial da bíblia (sic) dos muçulmanos é Corão, como se pode ver no Árabe e nas línguas ocidentais mais importantes?". E conclui, taxativo: "Uma emissora deste porte não deveria ter em seus quadros uma colaboradora tão desqualificada. Acho que isso seria um bom assunto para sua coluna".
Pois é bom assunto, mesmo. Vou seguir sua sugestão, caro Professor Capixaba, e começo absolvendo a moça, porque o livro sagrado do islamismo ora é chamado de Corão, ora de Alcorão; não existe forma "oficial", mas já vou dizendo que Alcorão sempre foi a mais usada em Português. Assim vem nos dicionários mais respeitáveis do passado (Bluteau e Morais); assim escrevia Camões, em 1572, em Os Lusíadas (Canto III,50): "Uns caem meios mortos, outros vão/A ajuda convocando do Alcorão".
Nos sete séculos que durou a ocupação islâmica de Portugal e Espanha, centenas de vocábulos árabes entraram em nosso idioma, muitos deles iniciados por "A": almôndega, alfândega, almofada, açafrão, açúcar, açude, adaga, aldeia, alface, algema, algodão, arroba, arroz, azeite, entre muitos outros. Essa curiosa coincidência nasceu de uma interpretação errônea que os ocupantes da Península fizeram do artigo "al", que acompanha todos os substantivos da língua árabe e que se modifica conforme a consoante que inicia o vocábulo seguinte (ar-ruzz, arroz; az-zayt, azeite), ampliando, para quem ouve, a sensação de ele faz parte da palavra.
Esse fenômeno, presente no Português e no Espanhol, fica bem evidente quando comparamos nosso açúcar, nosso algodão e nosso açafrão com o sugar, o cotton e o saffron do Inglês, com o sucre, o coton e o saffron do Francês, e com o zucchero, o cotone e o zafferano do Italiano, línguas que nunca estiveram em contato direto com o árabe.
Foi por esse motivo, aliás, que veio da França, já na idade moderna, a tendência a usar apenas Coran, alegando que assim se evitaria juntar um artigo francês com o artigo árabe. É claro que existem muitos de nós que usam simplesmente Corão, por se assemelhar mais ao aportuguesamento do termo árabe (al-Qurán); respeito a opção, mas não vejo razão para contrariar o que nossa tradição já fixou tão bem — assim como fez com almôndega, alface ou álcool, acrescentando aquele "al" que nenhum boi-corneta vai propor que se elimine.