Neste dia 28 de maio, para comemorar devidamente o centenário do professor Celso Pedro Luft, de quem até hoje sou aluno, escrevo este balanço do legado que ele deixou para todos os que estudam e se interessam pela nossa língua. Comemorar, como diz o termo, implica memória, e acho oportuno que as gerações que até hoje se beneficiam do que ele deixou avaliem o tamanho da dívida que temos para com ele; dito de uma forma que certamente o faria sorrir, conhecem o milagre, mas não conhecem o santo.
Seus livros — Primeiro, temos todas as obras que publicou, obviamente a parte palpável e visível deste patrimônio: gramáticas, dicionários, manuais, ensaios sobre linguagem — a relação é grande demais para esta singela coluna, mas todas elas indispensáveis para quem estuda ou leciona o Português. Não posso viver sem elas; só para constar, tive de comprar pela segunda vez os dois Dicionários de Regência, o Guia/Manual de Ortografia e o ABC da Língua Culta para substituir os exemplares que destruí pelo uso.
Indagação constante — Como todo grande mestre, porém, foi também muito importante — talvez até mais importante — a atitude de constante indagação que ele incutiu em seus discípulos, entre os quais me incluo. Em aula, a cena era clássica: ele parava no meio da fala e se voltava para o quadro-negro, absorto, imerso num de seus habituais silêncios — e voltava deles entusiasmado, compartilhando com a turma uma ideia inovadora sobre aquilo que estava explicando, com maior poder explanatório, deixando claro que não devíamos nos satisfazer com o sistema de regras petrificadas que sufocavam as aulas de Português sob um manto de chumbo.
Banco de dados — Sua influência, porém, passou muito além dos muros da Universidade. Dono de uma sólida formação clássica, era leitor incansável dos autores brasileiros e portugueses de todas as épocas, conhecedor profundo, portanto, de uma tradição que considerava não como modelo ou fonte de regras para a língua atual, mas, bem pelo contrário, como um tesouro extremamente rico de variantes e experimentos coletados ao longo dos quase mil anos de vida do nosso idioma. Como ninguém conhecia o Português mais do que ele, tornou-se uma espécie de oráculo de Delfos, um arquivo vivo e confiável para os pesquisadores, que recorriam a ele para ampliar os dados que precisavam para confirmar suas teses.
Ensino da língua — Apesar de ser criticado por uns e aplaudido por outros pela postura modernizante que adotou no seu livro Língua e Liberdade, de 1985, nunca teve dúvidas sobre a verdadeira função do professor de Português: para ele, a escola sempre será o lugar em que a criança vai aprender a variedade padrão do idioma (que ele chamava de "culta") porque ela, além de ser uma condição sine qua non da sociedade democrática, é a chave de todo o conhecimento e de toda a arte literária da nossa civilização.
Por isso, a tarefa fundamental do professor, segundo ele, é justamente diminuir a diferença entre a língua que o aluno trouxe de casa e a língua que a escola deve ensinar. Esta meta é fundamental, mas deve ser atingida com tolerância, sem correções humilhantes: "Quaisquer que sejam as deficiências ou distância da língua culta padrão que o aluno apresenta chegando à escola, é com esse material disponível que o professor deve começar o seu trabalho. E trabalhar em cima disso, não partir de uma linguagem ideal, contra a língua do aluno, para tentar impingi-la a este". Muitos tomaram essa observação como um ataque à língua culta e uma defesa do laxismo, mas mestre Luft, serenamente, desarmou na lata esta interpretação: "Idealista eu sou, confio nas pessoas enquanto seres perfectíveis: o impulso de ascender cultural, social e economicamente é normal em todo ser humano. Por que não haveria nas pessoas o desejo de ascender em linguagem?".
Legado — Por tudo isso, Celso Pedro Luft deixou uma marca indelével no estudo e no ensino do Português no Rio Grande do Sul — um caráter único, peculiar, que não se encontra nos demais estados. Isso não teria ocorrido sem ele, sem suas virtudes pessoais: Luft foi o único gramático de renome que reuniu a formação sólida de um filólogo clássico, a atitude eternamente investigativa de um cientista, a valiosa experiência de um professor e o bom-senso e a tolerância de um homem sábio. Sem exagero, posso dizer que jamais houve aqui alguém de sua estatura. Tivemos muita sorte em tê-lo entre nós.