Talvez por estar muito sensibilizado com o anúncio de que vou ser avô mais uma vez, dedico esta coluna — a última deste ano — a um leitor que não conseguiu esclarecer uma dúvida de sua curiosa netinha. Escreve Antunes P., meu conterrâneo de Rio Grande: "Depois de dois meses sem nos vermos, minha neta de nove anos veio jantar comigo — com todas as precauções, não é, professor? — e duas dúvidas surgiram enquanto estávamos escolhendo o que pedir pelo motobói. A primeira é minha: por que filé a cavalo não leva crase? A segunda é dela: bife a cavalo e a pé — de onde saíram esses nomes?"
Bem, caro Antunes, como deves saber tão bem quanto eu, há maneiras típicas (e regionais) de preparar certos pratos de nossa culinária ? tutu à mineira, camarão à baiana, risoto à milanesa, etc., que são formas reduzidas de "feito à moda mineira", "feito à moda baiana", "feito à moda de Milão". Nos menus dos restaurantes aparecem também alguns pratos especiais, geralmente inventados por celebridades ou batizados em sua honra, cujo nome tem a mesma estrutura linguística: filé à Chateaubriand, bacalhau à Gomes de Sá, picanha à Flores da Cunha, turnedôs à Rossini.
Em todos eles também está elíptico (isto é, subentendido) o mesmo vocábulo moda, que traz junto o seu artigo feminino, um dos componentes indispensáveis para a crase. No entanto, em filé a pé (com fritas e ovos) e filé a cavalo (só com ovos), não se trata de um prato feito à [moda do] pé ou à [moda do] cavalo, e por isso não ocorre a crase, pois o artigo feminino não está presente.
Agora, a netinha: por que são chamados assim? Bem, ao menos o bife a cavalo tem origem documentada nos cardápios da França, onde ora aparece como bifteck à cheval, steak à cheval ou — e talvez aqui esteja a chave do mistério — oeuf à cheval — literalmente, "ovo a cavalo" (devo lembrar que a preposição francesa à é sempre acentuada, não correspondendo, portanto, ao nosso à, em que este acento assinala a união do artigo com a preposição).
As receitas não deixam dúvida: um ou dois ovos fritos são servidos sobre um bife (de carne moída ou não) — ou seja, os ovos "cavalgam" o bife (trocando em miúdos, o ovo é o cavaleiro e o bife é a cavalgadura). Este prato atravessou o oceano e chegou tanto aqui quanto na Argentina, onde tem o mesmo nome (bife a caballo). Luiz Edmundo, autor de O Rio de Janeiro do Meu Tempo, registra o seu aparecimento no final do séc. 19: “É uma gíria de restaurante que ainda não se perdeu de todo. Um bife com ovo em cima é um bife com um ovo-a-cavalo".
Para designar um bife a cavalo acompanhado de fritas, cunhou-se aqui no Brasil a denominação de bife a pé. Por quê? A meu ver, pela simples analogia com "andar a cavalo vs andar a pé", onde existe uma real oposição semântica — ausente no caso do filé, onde pé entrou como simples marcador de diferença. É claro que os etimologistas amadores da internet não iam perder a oportunidade de propor explicações mirabolantes: a pé, porque a pessoa que caminha cansa mais e por isso precisa comer mais — daí o reforço das batatas; a pé, porque o prato leva mais tempo a ficar pronto, pois fritar batata demora muito mesmo — e por aí vai a valsa.