A pergunta vem de uma colega, professora de Português, que pede para não ser identificada: “Professor, estou numa saia-justa. A coordenação de nossa cadeira produziu uma aula de atividades sobre a música Dinamarca, do Gilberto Gil e do Milton Nascimento, que eu amo de paixão. Contudo, só ao preparar a aula em casa foi que notei que eles erram a conjugação do TU. Na letra, eles se dirigem todo o tempo a um capitão de navio usando a segunda pessoa, mas lá pelas tantas escrevem “Depois do dia em que tu partistes”. Fui conferir na música e é assim mesmo que eles cantam, com aquele S no fim. E agora? Se um aluno perguntar, digo que isso é licença poética ou admito que os compositores erraram mesmo?”
Cara colega, há muito venho usando aqui uma distinção que, apesar de jocosa, tem valor universal: há duas atitudes básicas no que se refere ao idioma que usamos — ou pertencemos ao bloco dos despreocupados ou ao bloco dos aflitos. Os primeiros não têm consciência da linguagem que utilizam; contentam-se em usá-la, trinando como os pássaros, e vivem muito bem com isso, desde o primeiro choro até o silêncio final. Os outros, ao contrário, numa atenção (e tenção) constante, jamais deixam de se preocupar com a observância daquilo que se convencionou chamar língua padrão. Trazem o olho e o ouvido sempre ligados, abrem o dicionário, consultam a gramática, inquietam-se quando o corretor automático sublinha alguma coisa no seu texto — e até destinam alguns minutos à leitura destas colunas, em que eu, aflito em tempo integral, converso com os demais membros da tribo.
Nos pontos em que a linguagem popular se afasta muito do que é considerado correto pela língua padrão, o aflito, ao contrário do despreocupado, assume uma atitude tensa, de autovigilância constante, por considerar — e com toda a razão — que qualquer desses erros considerados clássicos vai prejudicar sua imagem social ou profissional, ou mesmo manchar o seu cartaz nos sites de relacionamento (é só perguntar às frequentadoras do Tinder, por exemplo, a decepção que sentem quando o possível galã espanca impiedosamente o idioma...). Pois é exatamente nesses pontos de gelo fino que pode ocorrer, entre os aflitos, uma curiosa maneira de errar, chamada de ultracorreção ou hipercorreção pelos linguistas. Ficamos tão ansioso por evitar um erro para o qual fomos alertado que terminamos aplicando a regra onde não devia ser aplicada, corrigindo o que não era para corrigir. No fundo, estamos cometendo um erro novo ao tentar evitar um erro velho.
Este é exatamente o caso da letra de Dinamarca, onde aparece um desses pontos “minados” de nosso idioma: o uso do TU. Este pronome pode tornar-se uma armadilha fatal para recém-chegados, como é o caso de Gil e do Milton Nascimento, que usam você desde que nasceram. Ao escolherem aqui o tratamento na segunda pessoa, vieram pisando em ovos, cautelosos, cientes (ambos têm sólida formação escolar) dos perigos que isso implica — e erraram por excesso de cautela.
A desinência característica da segunda pessoa do singular é sempre o S (partes, partirás, partirias, partisses, partias), exceto num único tempo, o pretérito perfeito, em que este S é cedido à segunda pessoa do plural: tu fizeste, vós fizestes; tu partiste, vós partistes. Ora, aqui no Sul criou-se uma combinação alternativa do pronome tu com a forma verbal do você (tu vai, tu foi, tu é), usada naturalmente pelos despreocupados mas evitada pelos aflitos enquanto não obtiver a chancela dos guardiões da língua-padrão. E é nesse exato momento que ataca a hipercorreção: esforçando-se em falar certo, o pobre aflito muitas vezes se esforça demais e dá tanto impulso para montar no cavalo que vai cair do outro lado. Para não dizer *tu foi, *tu veio ou *tu disse (o asterisco assinala as formas condenadas pela gramática), ele acaba saindo com *tu fostes, *tu viestes, *tu dissestes, também erradas. Acho que deves explicar isso tintim por tintim aos teus alunos sem arranhar o talento do Gil e do Milton Nascimento; afinal, a boa intenção dos aflitos sempre serve para atenuar um pouco os seus pecados