Como eu já esperava, o avanço da pandemia prendeu as crianças em casa e fez aumentar sensivelmente as consultas a esta coluna: é um pai que não lembra mais o que é um ditongo crescente, é uma mãe que não consegue explicar a seu filho por que o nome da letra H é agá mesmo, escrito sem o H – e é, por fim, a leitora Maria Elisa W., do Paraná, cujo filho, num trabalho que compara o Português do Brasil com o de Portugal, precisa apontar cinco animais que têm nomes genuinamente brasileiros. "Faz muito tempo que não estudo isso, professor, mas tamanduá é nome daqui, tatu também, jacaré com certeza. Capivara, que eu saiba, também. Para fechar a lista, eu sugeri anta, mas meu filho disse que veio de fora, e quer botar gafanhoto, que só existe em nosso idioma. O que o senhor acha? A esta altura, nem sei mais se isso é pergunta de Português ou de Biologia...".
Fica em paz, cara leitora: eu não iria me intrometer neste assunto se tua dúvida fosse sobre o bicho em si (palavra utilíssima, aliás, de valor universal e genérico, que causou inveja a todos os naturalistas estrangeiros que visitaram o Brasil no séc. XIX porque divide o mundo em duas categorias exclusivas: "É planta?" "Não, é bicho!"). Como o que queres saber é o nome, porém, sinto-me à vontade para te responder − e já vou eliminando, de saída, a anta que sugeriste. Este vocábulo, assim como gazela e javali, vem do Árabe (algo assim como lamta), onde designava uma espécie de antílope de grande porte. O vocábulo entrou nas duas línguas ibéricas, que o aplicaram a animais diferentes: no Espanhol, é sinônimo de alce; no Português, é sinônimo de tapir (do Tupi), este sim um excelente acréscimo para fechar a lista dos cinco. Quanto ao gafanhoto, inseto que vem fazendo aparições periódicas e espetaculares desde o tempo em que a Bíblia estava sendo escrita, foi por pouco que teu filho errou o alvo: só nossa língua usa esse nome esquisito, é verdade, mas já veio pronto nas caravelas de Cabral e portanto não pode entrar na lista.
Agora guardamos o lápis e o caderno e vamos para o recreio, pois em torno do nome latino deste "bicho" formou-se uma fantástica ciranda linguística. Em Roma, chamava-se de locusta tanto o crustáceo quanto o inseto – ambivalência perigosa, na medida em que ambos são comestíveis. As línguas ocidentais, especialmente as românicas, herdaram o termo latino e resolveram, cada uma à sua moda, uma possível confusão que provocaria desastres em qualquer cardápio ou livro de culinária. No Italiano, locusta para o inseto, aragosta para o pitéu. No Inglês, locust para o que voa, lobster para o que nada. No Francês, a praga é sauterelle (porque salta) e a iguaria é langouste. O Espanhol aqui não deu a mínima e deixou tudo na mesma: uma nuvem de langostas, uma maionese de langostas (a confusão, como eu disse, cai muito mal no ouvido).
No Português, por fim, fomos radicais: chamamos de lagosta a prima do camarão e inventamos o vocábulo gafanhoto, formação misteriosa cujos elementos constitutivos (radical e sufixos) são obscuros: *gafanho nunca existiu; gafa sim, significando "gancho, garra", mas para ligar esse significado ao bichinho é preciso usar marreta e talhadeira, como fazem alguns lexicógrafos obsessivos que não conseguem conviver com palavras sem RG ou CPF: "gafanhoto vem de gafa, por alusão às patas do inseto, em forma de gancho"... Pobres tolos: aceitem os mistérios da língua: a origem de gafanhoto (como também a de canhoto) é desconhecida − ao menos por enquanto.
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