Na semana passada, um dos tópicos que deixou o mundo das redes sociais enfurecido foi o uso do verbo despiorar, que voltou para ter mais quinze minutos de fama. Digo mais porque este termo já tinha figurado nesta coluna há coisa de três anos, e não duvido que os que hoje o condenam sejam os mesmos que o vaiavam na ocasião. As reclamações contra este “neologismo” são totalmente compreensíveis, mas decididamente injustas, como veremos a seguir.
A maior parte dos falantes acredita que o Português, como qualquer outra língua, seja um organismo regido por um princípio de economia interna. Como no corpo humano, nada nele há de supérfluo, pois a lenta evolução foi implacavelmente eliminando (melhor seria aposentando) aquilo que perdeu a serventia.
Ora, ao mesmo tempo, nosso idioma é verdadeira máquina de criar palavras novas. Como um gigantesco Lego (as peças são os radicais, os prefixos e os sufixos), ele nos autoriza a experimentar combinações inéditas – aquelas que os gramáticos míopes do passado chamavam de “neologismos”, sem se dar conta que aquilo que é novo hoje logo deixará de sê-lo amanhã. Todos lembram quando um famoso ministro do governo Collor, na TV, garantiu que o Fundo de Garantia era imexível. Foi uma gritaria geral, e o pobre ministro, que não tinha mesmo muitas luzes, foi acusado de espancar a língua em que Machado é rei e Drummond é majestade. Coitado! Imexível é uma combinação tão clara e tão legítima quanto invencível ou infalível, mas como era nova, inédita, parecia, à primeira vista, uma aberração. Hoje ela dorme, serena, em todos os dicionários respeitáveis, sempre pronta para entrar em ação quando alguém quiser usá-la.
Como ela, centenas são experimentadas por este mundão de brasileiros, portugueses e demais lusofalantes. Algumas nunca chegarão ao dicionário, porque não foram escritas; outras, ao contrário, exatamente por terem sido escritas, ganharam um lugar que não mereciam. O que o leitor me diz de um comportamento descavalheiroso, um filho descarinhoso, uma crítica desamiga? Ou ao ouvir que o governador desaplaude (condena) este tipo de atitude, ou que o motorista foi desacidentado pela polícia (“fazer voltar a si depois de um acidente”)? Pois todas estas estão registradas no Houaiss e lá ficarão para sempre, inúteis, esperando que algum incauto as leve para dar uma voltinha em algum texto medíocre. Todas elas são combinações feitas dentro das regras, mas não passam de tentativas desastradas de sintetizar num só vocábulo aquilo que ficaria bem melhor se fosse dito em duas.
E o despiorar não cai nessa categoria? Por que dar à luz esse monstrengo, se já temos o antônimo melhorar? Acontece que temos aqui uma daquelas oposições que não são do tipo pão, pão; queijo, queijo. Elas admitem gradações intermediárias, como é o caso, por exemplo, de pobre x rico. Criticaram o senador Cristóvão Buarque quando escreveu que “Antes de enriquecer o país, é preciso desempobrecer o seu povo”. O contrário de pobre é rico, sim, mas há uma longuíssima estrada entre um e outro. O pobre que tiver o seu mínimo salário dobrado terá desempobrecido um pouquinho, ou seja, estará menos pobre, mas não ousaríamos dizer que ele terá ficado mais rico.
É também o caso de quente x frio. Objetivamente, na coluna do termômetro, se ontem fazia 2º e hoje faz 4º, houve um aquecimento, mas todo o mundo que conheço prefere dizer que está menos frio a dizer que está mais quente porque assim ele se situa mais perto do ponto da escala de temperatura em que ele se encontra – mais ou menos como aquela parábola do copo com água até a metade, que alguns veem como meio cheio, outros como meio vazio.
Se eu digo que a situação está despiorando, estou frisando que ela era ruim, mas agora está menos ruim – o que é muito diferente de dizer que ela melhorou. É o mesmo espírito de frases como “Na eleição, deveríamos escolher o melhor candidato; hoje, infelizmente, estamos condenados a votar no menos pior”: todos os candidatos são ruins, e vamos escolher o candidato que menos danos venha a causar.
E uma surpresa final: o leitor sabia que desde o século 16 temos desmelhorar? Houaiss define como “fazer retroceder as melhorias que se vinham processando” – exatamente o reflexo espelhado de despiorar. Morais, no séc. 19, chega a registrar um derivado: “Trás um bom rei, que melhorou a fortuna, os costumes e as artes de sua nação, sucede outro, desleixado, o desmelhorador de tudo isso”. Hoje o julgamento do uso foi feito e eles não são mais usados; vamos ver o que acontecerá ao despiorar.