A primeira consulta vem de Raimundo W., de Criciúma: "Tendo acompanhado atentamente os últimos acontecimentos no Afeganistão, e profundamente sensibilizado com o povo daquele país, gostaria de saber qual é o plural correto de afegão, pois já vi de tudo um pouco".
Já faz quase dez anos, caro Raimundo, que esse plural foi assunto desta coluna, mas a volta dos talibãs ao poder trouxe-o de novo à berlinda. No estágio atual do idioma (que ainda não completou seu primeiro milênio de existência), o plural dos nomes terminados em ÃO ainda é uma área pantanosa que só o passar dos séculos poderá solidificar. Hoje temos uma só forma para o singular (leão, irmão, alemão) mas três formas no plural (leões, irmãos, alemães). Esta é a razão de tua dúvida: qual dessas três terminações (-ões, -ãos ou -ães) vai formar o plural de afegão?
Como é que se escolhe entre elas? As gramáticas não têm aqui muita convicção. Em muitos casos, registram duas ou mesmo três possibilidades de plural para um mesmo vocábulo; quando afirmam, por exemplo, que aldeão pode flexionar em aldeões, aldeães ou aldeãos, estão apenas refletindo o estado de hesitação de nossa língua, que teve paralisado, pela difusão do texto escrito, um movimento em direção a uma forma única de plural. Essa seria a situação ideal: apenas um singular e apenas um plural. Contudo, por enquanto ficamos assim suspensos no meio da evolução, com um único singular e três plurais diferentes, e temos de conviver com isso.
O plebiscito já foi feito, aliás, pois –ões recebeu e continua recebendo a maioria esmagadora dos votos. Todos os aumentativos e todos os novos vocábulos terminados em -ão que ingressam agora em nosso léxico vão flexionar em -ões, o que o credencia, estatisticamente, como o plural canônico para os vocábulos com essa terminação. Os outros (poucos) que escolhem -ãos e -ães são memorizados pelos falantes (irmão, irmãos; pão, pães), isso quando não terminam também aderindo ao –ões genérico: foi o caso de corrimão, cujo plural original é corrimãos (já que vem de mão), mas que já aparece, em todos os dicionários, também com a possibilidade de formar corrimões.
É assaz interessante verificar como esta mesma questão aparece no Espanhol, a irmã inseparável do Português. Ambas nasceram juntas na Península Ibérica e juntas atravessaram o Atlântico, passando por uma evolução muito semelhante. Lá, no entanto, persistem três singulares diferentes, cada um com seu plural: hermano, hermanos; leon, leones; alemán, alemanes. Com raras exceções, -anos corresponde ao nosso –ãos, -ones ao nosso –ões e –anes ao nosso –ães (hermanos, irmãos; leones, leões; alemanes, alemães)
Vamos agora ao plural de afegão. No Espanhol, segundo o vetusto Diccionario publicado pela Real Academia, encontramos afgano, plural afganos — coincidindo, como era de esperar, com a preferência da maioria dos nossos falantes por afegãos e confirmando a correspondência do –anos do Espanhol com o –ãos do Português. Alguns ainda optam pela variante afegães, que não pode ser condenada, mas que vai pouco a pouco caindo no esquecimento.
A segunda consulta vem do leitor Luiz Felipe G., de Porto Alegre: "Prezado professor. Com a idade, minha dose de implicância com novidades tem aumentado muito. Uma delas é com a redução do nome do nosso maior escritor, que vem passando de Machado de Assis a Machado. E mais implico por ignorar o motivo que o leva, assim como a muitos de seus ilustres confrades, a despojarem nosso mestre do seu último apelido de família. Assim, apelo a sua proverbial paciência para que me explique a causa dessa redução".
Prezado Luiz Felipe: acho que a idade (a minha também) nos dá direito a certas implicâncias e a uma dose dupla de rabugice (ao menos no meu caso, pois tu, pelo que vejo por tua mensagem, consegues manter uma lhaneza exemplar) — mas espero que eu possa te convencer de que eu e os meus confrades não estamos "inventando moda", como dizia minha avó. Trata-se simplesmente de um cacoete técnico, muito comum entre os que, por profissão, têm de se referir, ao longo de um texto ou de uma aula, dezenas de vezes ao mesmo escritor. É uma redução, sim, mas praticamente indispensável, aplicada com todo o mundo. Dependendo do caso, o autor pode ser designado apenas pelo último sobrenome (José de Alencar, Mário Quintana, Manuel Bandeira), ou apenas pelo prenome (Graciliano Ramos, Clarice Lispector, Euclides da Cunha, Rui Barbosa) — ou por um dos sobrenomes escolhidos por misterioso consenso, como é o caso do Drummond e do Machado. Tenho certeza de que não estranharás se alguém mencionar um soneto de Bilac ou confessar que prefere Eça a qualquer outro autor português...