1 — Irritada, minha filha adolescente desabafa: por que damos tanta atenção à ortografia? Ora, porque ela é, acima de tudo, uma demonstração de que não somos egocêntricos e que nos preocupamos com o "outro". Não é, como dizem por aí, uma niquice supérflua, apenas outra forma de demonstrar culturalmente a superioridade dos privilegiados sobre os desvalidos. A observância a seus princípios é fundamental para assegurar a fluidez, a transparência necessária que o texto deve ter para ser entendido em todas as suas intenções e qualidades, e não é por acaso que ela é levada a sério por qualquer comunidade deste planeta que use a escrita.
Onde há erros de grafia, quebra-se o fluxo do texto. Eles são, minha filha, como aqueles insetos que vinham se esborrachar no vidro do carro, quando viajávamos para a praia, lembra? Eles fazem nossos olhos abandonarem a estrada e se fixarem no vidro. É impossível aproveitar a paisagem se nosso olhar for requisitado constantemente por aqueles bichinhos com recheio amarelo que vêm se achatar no parabrisa. Escrever com erros faz o leitor se voltar para aquilo que não interessa. Não é apenas uma questão de etiqueta e cortesia (embora o seja em parte; antes da Revolução Francesa, não eram poucos os nobres que consideravam a preocupação com a ortografia uma fraqueza dos "mal-nascidos"...); cada vez que quebro a convenção ortográfica, quem sai perdendo sou eu, pois levo meu leitor a desviar sua atenção do texto para fixá-la na grafia da palavra.
2 — Dando razão aos princípios defendidos pela quase centenária Semana de Arte Moderna, nossa índole antropofágica talvez esteja presente também na maneira como tratamos os vocábulos importados: os franceses, por exemplo, mantêm sua grafia original mas os pronunciam à sua maneira. Em outras palavras, admitem conviver com corpos estranhos na escrita, mas não na pronúncia.
Nós, ao contrário, tentamos sempre que possível manter a pronúncia original, mas adaptamos a grafia ao nosso sistema, a fim de que a palavra não destoe das que vivem aqui. Respeitamos o vocábulo estrangeiro no que ele tem de mais essencial (o som), mas o amoldamos à forma usual dos nossos próprios vocábulos. Os franceses escrevem leader, groggy, bazooka, spaghetti, pyjama e vodka mas pronunciam /lidér/, /groguí/, /bazucá/, /spaguetí/, /pijamá/ e /vodcá/— enquanto nós escrevemos líder, grogue, bazuca, espaguete, pijama e vodca, e assim pronunciamos.
Acho que não exagero em ver aqui um resquício da nossa cordialidade interior. Quando mirage e sabotage entram no Português, recebem um M final e pronto: já podem ir brincar no pátio junto com selvagem, ferragem e bobagem, sem despertar a menor suspeita de não tenham nascido aqui. Assim somos nós: simpáticos, acolhedores, generosos, sempre procurando evitar conflito.