Como é impossível não falar neste vírus que toldou nosso horizonte e invadiu as nossas vidas, vou discutir o seu nome, esperando, como faziam nossos índios, que isso ajude a exorcizar de uma vez por todas este demônio.
Ao contrário do que reza o provérbio, tamanho foi documento, sim, e por milênios — especialmente quando se tratava do inimigo a enfrentar, fosse ele de carne e osso ou apenas imaginário. As mitologias estão cheias de seres gigantescos que só os deuses ou os heróis podiam derrotar. No Antigo Testamento, por exemplo, fala-se do leviatã, um ser monstruoso, descrito na literatura rabínica como um monstro marinho descomunal, armado de chifres que traziam escritas as qualidades do produto, qual uma embalagem do supermercado : "Eu sou uma das criaturas mais malvadas que habitam o mar e tenho trezentas milhas de comprimento"!
A mitologia grega, um pouco menos exagerada, inventou Oto e Efialte, dois dos muitos filhos do deus do mar. Não sabemos qual o real tamanho desses gigantes porque, segundo a lenda, que cresciam um metro e meio de altura e meio metro de largura a cada ano — e estariam crescendo até hoje se esses dois galalaus não fossem prevalecidos (é palavra centenária, caro leitor) e tentassem subir até o Olimpo, empilhando uma montanha em cima de outras. Como era de esperar, sua desmedida foi castigada e as flechas de Apolo interromperam para sempre o seu crescimento.
Pouco a pouco, porém, à medida que os mitos foram cedendo lugar à realidade, os perigos ficaram reduzidos aos seres naturais da fauna do planeta. Com isso, subiram ao pódio da periculosidade a baleia e o elefante, respectivamente na água e na terra, seguidos um degrau abaixo pelo nervoso rinoceronte e o hipopótamo bonachão — nenhum deles, porém, capaz de vencer a força e a tecnologia do homem, que passou inclusive a caçá-los e (o que é a prova definitiva de sua superioridade) a comê-los.
Só no século 17, com o desenvolvimento do microscópio, o homem descobriu, incrédulo, que havia uma miríade de seres minúsculos, invisíveis a olho nu, espalhados pelo mundo. O primeiro a identificá-los foi o holandês Leeuwenhoek, que os chamou de animaizinhos, ou animálculos (termo encontrado em nossos bons dicionários). Em seguida foi cunhado o termo micróbio (micro+bio, "pequena vida"), que serviu durante muito tempo como termo genérico para designar toda essa fauna liliputiana. Quando Pasteur e Koch provaram que alguns desses microrganismos eram os responsáveis pela cólera, a tuberculose e o antraz, bem como pela putrefação dos alimentos, a Humanidade se deu conta de que sempre tinha convivido com inimigos mais formidáveis que o Leviatão ou os filhos de Posêidon.
A partir da segunda metade do séc. 19, o estudo atento produziu uma série de vocábulos antes inexistentes, numa tentativa de classificar esses microorganismos — bactérias, bacilos, vibriões, fungos, protozoários. Menor que todos eles, mas muito mais perigoso, vírus, ganhou um nome velho, mas reformulado. No séc. 17, como vimos, ninguém ainda suspeitava da existência deste zoo microscópico. Nessa época a malária era assim batizada porque se acreditava que fosse causada pelo ar parado dos pântanos, e só um século depois se descobriu que vinha de um protozoário transmitido por um mosquito — daí o nome que lhe deram no Italiano: mal'aria (mala+aria, literalmente "ar ruim").
Agora o provérbio está certo: o tamanho deixou de ser documento. O vírus, que ironicamente é muito menor que seus irmãos (e muito menor que o Leviatã, a baleia ou o elefante), é o mais perigoso de todos os inimigos que já tivemos de enfrentar. Ele só começou a ser mencionado como agente patogênico no final do séc. 19, mas o termo já existia no Português há quase três séculos, usado com o sentido de "sumo; pus; veneno". Um dicionário o define cruamente como "a peçonha, o mau cheiro, o fedor dos sovacos dos braços, o fedor a bodum", Para Bluteau (1728), uma chaga virulenta seria aquela que está coberta por uma exsudação purulenta, "horrível"...
A partir de 1880, a ciência universaliza o sentido moderno do vocábulo. Nos anos 70, o termo ingressou como metáfora na linguagem da nova ciência da computação, pois servia como uma luva para designar os software executados sem conhecimento do usuário e disseminados por toda uma rede de computadores. No início deste século, finalmente, sofreu outra mutação, surgindo viral, viralizar — "tornar-se subitamente popular pelo compartilhamento nas redes sociais". Vai parar por aí? Acho que não; espero ao menos estar vivo para escrever sobre isso.