Agatha Christie escreveu Os Trabalhos de Hércules, coletânea de doze contos em que Hercule Poirot, metaforicamente, enfrenta os mesmos perigos que o seu musculoso xará. O cão Cérbero, que vigiava a entrada do Mundo dos Mortos, aparece aqui como um ameaçador cachorro preto que guarda a porta de um night-club; o javali de Erimanto vira um gordo mafioso que tenta se esconder numa estação de esqui na Suíça − e assim por diante. É na Hidra de Lerna, porém, que a autora é mais feliz: Poirot, contratado por um viúvo que não aguenta mais os rumores de que ele próprio tenha matado a falecida, declara, filosoficamente: "O boato é sem dúvida a Hidra de Lerna de nove cabeças, que não pode ser exterminada porque tão logo uma cabeça é cortada outra cresce em seu lugar".
Sei muito bem o que é isso; não há semana que não apareça um desses "boatos" sobre linguagem, o qual – é uma praga − mais adeptos vai atrair quanto mais absurdo ele for. Eu pouco posso fazer para matar essas bobagens na casca, mas assim mesmo nunca desisto: se não posso extinguir o fogo, ao menos tento retardar a sua propagação − e registrar meu protesto.
Pois agora vem um obscuro blogue gaúcho avisar que empregamos a palavra colorado sem saber que, na origem, ela estava ligada à escravidão! Ele reconhece que esta é hoje a designação dos torcedores do Internacional, mas prossegue, impávido na sua ignorância: "Mas há cem anos colorado tinha outro significado: queria dizer escuro ou negro. Por isto, alguns rios receberam o nome de colorado. Eram rios de águas turvas, escuras devido à presença da terra carregada pela correnteza".
Olhem aí, mais um terraplanista da linguagem! Durante séculos, nosso idioma usou este termo com o sentido de vermelho, ou colorido, ou ruborizado, mas aí chega este profeta (não digo o nome para não fazer propaganda de coisa ruim) e num traque resolve negar todas essas evidências! Na Crônica dos Frades Menores (de 1285), um superior admoesta um jovem frade, "o qual, todo colorado, abaixou a cabeça e entrou no refeitório, juntando-se aos outros na mesa". Como devo entender esta passagem, então? O frade ficou preto de vergonha? Se muitos riachos e rios que receberam o nome de Colorado (inclusive o do Arizona), não seria por terem as águas avermelhadas pelo tipo de solo característico? E a sinistra gravata colorada, nome dado à degola aqui no pampa, não era uma alusão à língua ensanguentada que saía pelo talho no pescoço? E no Uruguai, nosso estimado vizinho, o partido dos colorados, eternos rivais dos blancos, por acaso não tem o vermelho como a cor-símbolo? E não será exatamente por isso, ó grande sumidade, que os torcedores do Internacional receberam esta denominação?
A esta altura, o leitor deve estar perguntando por que dar tanta atenção a um blogue assinado por um amador. É fogueira que pode incendiar uma Austrália, ou não passa de uma chaminha que vai se extinguir sozinha? Pois, amigos, eu nem falaria nesta abstrusa teoria se ela não tivesse sido encampada por um autor de renome nacional, Laurentino Gomes, em seu livro Escravidão. Este jornalista, autor de várias reportagens sobre a nossa história, aqui pecou por indesculpável ingenuidade, engolindo com chifre e tudo aquela peta sobre o significado "antigo" de colorado. Diz ele, textualmente: "No passado, referia-se aos negros e mulatos... Um dos primeiros clubes de futebol a aceitar jogadores e torcedores de origem africana foi o Internacional... Por isso, hoje, os torcedores do Inter se chamam, orgulhosamente, de colorados". Ah, para com isso! É claro que historicamente ocorreu uma maior ligação dos negros com o Inter — e não é por acaso que nosso mascote é (ou era?) um esperto saci-pererê — mas não fica nada bem forjar uma explicação etimológica para inventar uma falsa novidade.