A comparação pode parecer batida, mas ainda tem utilidade: quando estamos ao volante de um automóvel, dirigimos nosso olhar para a estrada e só vamos mudar o foco para o para-brisa se alguma coisa inesperada chamar nossa atenção para ele. Assim é a linguagem: as palavras são usadas por nós como se fossem um vidro transparente, até que alguma trinca ou algum inseto nos faça examiná-las mais de perto. Pois este é o tema da coluna de hoje: dois leitores, cada um por sua conta, resolveram olhar para o para-brisa e mandaram suas dúvidas sobre a real interpretação de duas expressões consagradas.
A primeira vem de Fernando W., de Brasília: "No meio jurídico, condena-se o juiz que costuma tomar medidas diferentes para casos similares, dizendo-se então que ele se utiliza de "dois pesos e duas medidas" em suas decisões. Parece-me, contudo, que esta expressão não retrata exatamente a realidade que se quer criticar, pois se existem dois pesos diferentes, estará certo o julgador que tomar duas medidas também diferentes − aqui não há injustiça alguma. O correto não seria acusá-lo de usar "um peso e duas medidas?".
Caro Fernando, a expressão é mesmo "dois pesos e duas medidas". É necessário, primeiro, entender que medida, nesta frase tão antiga, designa aqueles recipientes que serviam para medir: antes do sistema métrico, falava-se em medidas de trigo, de lenha, de vinho, etc. Não se trata, portanto, das medidas tomadas por uma autoridade ou, no caso, por um juiz.
Além disso, aquele "E" tem valor alternativo, podendo ser substituído pelo "OU" ― o mesmo que usamos quando dizemos que "esta planta deve ser protegida do calor E do frio" (ambos a prejudicam). Para que seja justo, portanto, um julgamento não pode se valer de dois pesos ou de duas medidas: este é o entendimento de Antenor Nascentes em seu Tesouro da Fraseologia Brasileira, um clássico (e o melhor que temos até agora sobre o assunto). Lembro que a expressão veio da Bíblia: "Dois pesos diferentes e duas espécies de medida são abominações ao Senhor, tanto um como outro" - Provérbios 20:10 (trad. de João Ferreira de Almeida - ed. Fiel).
A outra dúvida vem de Jeniffer S., de Paranaguá, preocupada com a Reforma da Previdência: "Professor, a advogada que meu marido consultou disse que, ao que tudo indica, ele não vai poder se aposentar antes que aprovem a Reforma porque o tempo de trabalho dele sofreu solução de continuidade. Por que se fala assim? Se é solução, o problema não estaria resolvido?"
Prezada Jeniffer, infelizmente a palavra solução tem dois significados bem diferentes. Quando falamos na solução de um problema, ela significa o ato de resolver (sendo, aqui, sinônimo de resolução). Este, contudo, não é o nosso caso. Aqui solução é o ato de dissolver, sendo, portanto, sinônimo de dissolução. Falamos de solução aquosa, solução salina, solução de glicose, etc. (da mesma raiz do café solúvel, por exemplo). Solução de continuidade significa interrupção, isto é, a continuidade foi "dissolvida, rompida" ― em outras palavras, há algum lapso no tempo de trabalho do teu marido. Sinto muito.