Corrigir o passado e domar o futuro: eis duas fixações da nossa época em relação à arte. De um lado, a aflição moral com as imperfeições humanas retratadas nas obras de arte e a preocupação exagerada com a biografia dos artistas. Do outro, infinitas possibilidades de manipulação de conteúdos digitais desestabilizando formas tradicionais de criação e fruição. Vanguarda e retaguarda — no sentido bélico — mobilizam-se nas duas frentes do combate.
Nessa transversal do tempo em que passado e futuro parecem desacomodados, é natural não saber o que pensar (ou sentir) diante de um Harrison Ford rejuvenescido ou de uma Elis Regina trazida à vida para dirigir uma Kombi. Somos um pouco como aquela primeira plateia dos Irmãos Lumière assistindo à chegada de um trem no cinema sem saber se estamos assustados ou maravilhados. Tudo que é sólido vira pixel, e as dúvidas se acumulam. Qual o limite para a apropriação de uma voz, de um rosto ou mesmo de um estilo pela inteligência artificial? Como proteger a posteridade de um artista? Devo me chocar com o fato de filhos administrarem a imagem dos pais como administram outras partes do seu legado? Mesmo quando as questões éticas estiverem menos nebulosas, ainda haverá um enorme espaço aberto para o debate estético. O que emociona algumas pessoas vai continuar causando estranhamento, ou mesmo repulsa, em outras. Se você já foi a uma exposição de arte contemporânea sabe bem do que estou falando.
Enquanto isso, no setor das querelas retroativas, multiplicam-se as estratégias para higienizar o passado: livros banidos de bibliotecas, artistas cancelados, obras varridas para baixo do tapete da História ou editadas para excluir conteúdos indesejáveis. Um exemplo recente, banal, mas muito ilustrativo: sem qualquer aviso prévio ao espectador, algumas plataformas de streaming americanas decidiram cortar um pequeno diálogo do filme Operação França (1971) em que um dos personagens faz um comentário racista. O diálogo cortado não é gratuito e ajuda a compor a personalidade do personagem (um policial racista, vejam só), mas isso nem sequer vem ao caso. O problema é imaginar que nenhum livro, filme, peça de teatro ou série de televisão está livre de intervenções desastradas como essa.
A pirueta tecnológica de hoje é o relógio digital de amanhã, mas censura é sempre censura. Disputas em torno de direitos autorais e de imagem me parecem problemas muito mais fáceis de equacionar, em um futuro próximo, do que a milenar tentação de eliminar, a facão, tudo aquilo que nos desagrada.