John Lennon tinha acabado de sair da casa de Paul McCartney, onde os dois passaram a noite compondo sabe-se lá que clássicos do futuro, quando uma cena insólita chamou sua atenção: um casal jogando cartas, na varanda, no rigoroso inverno de Liverpool. Na noite seguinte, John comentou com o amigo que os vizinhos dele deviam ser doidos para encarar um carteado ao ar livre, tarde da noite, naquele frio de rachar. Paul achou estranho e decidiu dar uma espiada. Sim, a varanda estava iluminada de novo. Sim, lá estavam as duas figuras inclinadas, uma bem perto da outra, mas não eram seus vizinhos, como John havia concluído ao apertar os olhos em busca de um foco impossível, mas José e Maria – em um presépio.
Paul contou a anedota na abertura da mostra (que também virou livro) Paul McCartney Photographs 1963-1964: Eyes of the Storm, inaugurada há duas semanas na National Portrait Gallery, em Londres. Na exposição com imagens de bastidores dos Beatles, John aparece em uma das fotos usando óculos de armação grossa. A fotografia foi tirada por Paul, dentro de um carro, longe dos fãs. Isso porque, até ser apresentado ao estilo de armação hoje conhecido como “oclinhos John Lennon”, John detestava ser visto de óculos em público. Não seria em uma rua escura e deserta de Liverpool, onde um casal desafiava o inverno jogando cartas, que ele ficaria à vontade para assumir a miopia.
O ex-beatle foi um dos primeiros ídolos, junto com Buddy Holly, a transformar seus óculos em marca registrada e inspiração para legiões de míopes em busca de um estilo próprio (mesmo que copiado). Como quase tudo que envolve os integrantes da banda, a origem da moda está bem documentada: John começou a usar a armação redonda em setembro de 1966, como parte da composição do personagem que interpretaria na comédia Como Eu Ganhei a Guerra (1967), de Richard Lester. Deu match.
John Lennon pode ser o míope mais famoso do mundo, mas o verso que melhor sintetiza a principal angústia, real ou imaginária, de quem usa óculos na adolescência foi escrito por um brasileiro (Herbert Vianna, claro) há pouco menos de 40 anos: “Por que você não olha pra mim? (ô-ô)”. Quem já encarou uma reunião dançante sem enxergar um palmo adiante do nariz, mesmo correndo o risco de acabar confundindo gato com lebre, sabe bem os riscos que os míopes são capazes de correr para serem vistos.
Como o leitor não pode adivinhar pela foto que ilustra esta coluna no jornal, eu também sou míope – e também sempre odiei usar óculos.