Passei o último São João em uma das cidades que mais levam a sério a data. Em Montreal, não tem casamento na roça nem quentão – que eu saiba – mas tem desfile, carro alegórico, shows de diferentes estilos musicais e bonecos gigantes parecidos com aqueles do Carnaval de Olinda – além de muita gente na rua balançando bandeirinhas do Quebec. Para que todo mundo possa participar desse folguedo de verão, o dia de Saint-Jean-Baptiste é feriado na região.
Cerca de um terço dos canadenses não professa qualquer tipo de religião. Logo, essa animação toda em torno de São João tem menos a ver com a devoção ao santo do que com o orgulho nacional dos quebequenses, que aproveitam a data para celebrar a cultura franco-católica que os distingue das outras províncias canadenses. É tipo assim um 20 de Setembro setentrional. Ao mesmo tempo em que aproxima a comunidade de suas origens e tradições, reafirma a identidade local diante de uma vizinhança que cultua outros heróis e outras façanhas.
Enquanto isso, bem longe dali, um programa de TV debatia o equilíbrio entre tradição e ruptura nas festas de São João brasileiras. Há duas semanas, durante o Saia Justa (GNT), Astrid Fontenelle e Gabriela Prioli discutiram o ecletismo musical das festas juninas – a primeira criticando a invasão do arraial por ritmos como axé e sertanejo, a segunda defendendo o laissez-faire cultural.
É bonito ver como uma tradição que remonta a rituais pagãos, foi ressignificada pelo cristianismo e viaja pelo mundo há centenas de anos adquiriu contornos diferentes conforme o território em que aportou. Por algum motivo, no Nordeste brasileiro e no Quebec a festa assumiu a marca da identidade regional – o que não significa que a tradição está condenada a permanecer do mesmo jeito até o fim dos tempos. A cultura está sempre em movimento. Ou não é cultura.
Não acredito que a música sertaneja, o axé, o funk ou qualquer outra novidade introduzida nas brincadeiras juninas ameace o São João tradicional, mas entendo quem se preocupa com a monocultura musical que tomou conta da indústria fonográfica brasileira nos últimos anos. A ideia de que as festas devem oferecer “o que o povo gosta” pode ser uma ótima estratégia para garantir retorno comercial, mas não funciona como política cultural – que é a arte de zelar pelo reconhecimento, proteção e estímulo de manifestações que nem sempre fazem brilhar os olhos do mercado e dos patrocinadores.
Citando os versos de uma canção do pai, Bela Gil fez a observação mais inteligente do programa: “O povo sabe o que quer, mas o povo também quer o que não sabe”.