Jornalista formada pela UFRGS, com especialização em Economia da Cultura, cronista, autora dos livros Agora Eu Era e Meus Livros, Meus Filmes e Tudo Mais.

Mexido e literário
Opinião

O ovo e o espeto

Quem examinar qualquer gráfico sobre o aumento do consumo do alimento ou sobre a disparada dos preços do produto vai encontrar uma reta erguendo-se ao infinito

Claudia Laitano

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Em 2025, o ovo viceja, o ovo vipa, o ovo vinga.

“Eu sei por que o ovo se parece com um espeto!”, anuncia Brejeirinha (uma espécie de Emília de carne e osso, dotada de precoce — e transbordante — vocação literária) no início dessa obra-prima de humor e delicadeza que é o conto Partida do Audaz Navegante (1962), de Guimarães Rosa. Aos seus ouvintes e a nós, os leitores, cabe o esforço de embarcar na jornada imaginativa de Brejeirinha marinando nossas próprias impressões sobre o enigma.

Fabulador muito mais arbitrário e desmedido, o noticiário recente arranjou um jeito de oferecer uma solução matemática para as álgebras de Brejeirinha. Quem examinar qualquer gráfico sobre o aumento do consumo de ovos nos últimos anos ou sobre a disparada dos preços do produto nos últimos meses vai encontrar uma reta erguendo-se ao infinito muito parecida com um espeto em riste.

Em 2025, o ovo viceja, o ovo vipa, o ovo vinga.

Nos Estados Unidos, a gripe aviária fez sumir a mercadoria das prateleiras, o que deu origem a uma nova profissão: o corretor de ovos. Com a ajuda desse oviduto profissional, comerciantes desesperados pelo artigo em falta e produtores com estoque suficiente para atender a demanda em alta conseguem fechar negócio de maneira mais rápida e eficiente, garantindo assim o omelete nosso de cada dia — ainda que a preços chocantes.

No Brasil, o alimento que virou o elixir mágico de músculos e tecidos ganhou vitrine nacional quando o BBB 25 criou um “ovômetro” para medir o consumo da influencer Gracyanne, capaz de absorver 40 ovos por dia como quem beberica um licor de jenipapo depois do almoço. (Não sou uma ovívora tão ávida, mas, como qualquer pessoa que frequentou uma nutricionista nos últimos anos, também aprendi a confiar nos milagres de Santa Clara.)

Eu adoro ovos, especialmente nas versões mexido e literário. Mais ou mesmo na mesma época em que Rosa escrevia Partida do Audaz Navegante, dois autores igualmente grandes produziram ovações ao coração hermético da vida. João Cabral: “O ovo, e apesar de pura forma concluída, não se situa no final: está no ponto de partida” (O ovo de galinha, 1961). Clarice Lispector: “Olho o ovo com um só olhar. Imediatamente percebo que não se pode estar vendo um ovo. Ver o ovo nunca se mantém no presente: mal vejo um ovo e já se torna ter visto o ovo há três milênios. — No próprio instante de se ver o ovo ele é a lembrança de um ovo. — Só vê o ovo quem já o tiver visto. — Ao ver o ovo é tarde demais: ovo visto, ovo perdido”. (O ovo e a galinha, 1964).

Autora de alguns dos livros mais desafiadores da literatura brasileira, Clarice dizia que nem ela mesma entendia o que O ovo e a galinha queria dizer.

O ovo é um espeto.

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