O livro é grande (1.160 páginas), caro (R$ 200) e pesado (1,5 quilo). Antes de comprar Pessoa: Uma Biografia, de Richard Zenith, precisei calcular se o calhamaço cabia no orçamento, na mala (voltava do Brasil) e no tempo que eu estava disposta a dedicar à vida de um único escritor – ainda que extraordinário. Três meses depois, mal cheguei à metade da jornada (navegar é preciso), mas o tribunal de contas intangíveis aqui de casa já aprovou, sem ressalvas, o investimento.
Fernando Pessoa (1888 - 1935) era um mistério até para quem conviveu com ele, adverte o biógrafo logo na introdução. Depois de passar parte da infância na África do Sul, voltou para Lisboa e nunca mais viajou. Publicou apenas um livro em vida e deixou milhares de textos dispersos guardados em um baú (inclusive a obra-prima O Livro do Desassossego, que está chegando às livrarias brasileiras em novas edições da Cia. das Letras e da Todavia). Fumou, bebeu e torrou uma herança inteira em projetos de negócios que não deram certo. Era homossexual, mas provavelmente não teve relacionamentos sexuais nem com homens nem com mulheres. Morreu, aos 47 anos, sem receber a devida atenção de seus contemporâneos. À parte isso, tinha em si todos os sonhos do mundo.
O bom biógrafo é aquele que consegue reconstituir não apenas as coordenadas de espaço e tempo, mas a constelação de ideias e personagens que orbitam em torno do seu objeto de estudo. No caso de Fernando Pessoa, por motivos óbvios, há uma constelação de constelações a ser examinada. Vidas célebres como as de Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos, três dos quatro maiores poetas de Portugal do século 20 (o quarto seria o pai-de-todos, o próprio Fernando Pessoa), mas também existências quase esquecidas entre tantas criações melhor desenvolvidas. É o caso do ultrarracionalista Barão de Teive, que cometeu suicídio por não aguentar tanta lucidez, da platônica Maria José, única mulher entre os heterônimos, ou do solitário Jen Seul de Méluret, que escrevia em francês. Incluindo trabalhos produzidos quando ainda era criança, Zenith calcula que Pessoa tenha criado mais de cem autores fictícios, dos quais usou ou planejou usar a assinatura.
Através de seus heterônimos mais conhecidos, o poeta explorou diferentes estilos, temas e visões de mundo. Isso pode dar a impressão de que Fernando Pessoa era apenas um autor genial testando os limites do seu talento, mas os heterônimos eram muito mais do que produtos de uma mente prodigiosa – como a nova biografia nos ajuda a entender. Para Pessoa, ser uma constelação era uma forma de existir e de apreender a realidade. Do único jeito possível em um mundo fraturado: aos pedaços.