Não vou votar no primeiro turno. Vim fazer palestra em Campo Grande, e simplesmente não tem voo de volta até domingo. Na verdade, não tem voo na próxima semana inteira na base interina de Canoas. O que me resta seria pagar R$ 4 mil para pousar em Caxias, Pelotas, Chapecó, Jaguaruna ou Florianópolis, ainda precisando arcar com os custos e as longas horas da viagem terrestre.
Acabaria sendo o voto mais caro da história gaúcha.
E não há nenhuma graça em justificar o voto. É uma módica assinatura num canhoto, em impessoal e pragmático adeus ao burburinho. Um momento de solidão no meio de uma multidão apaixonada de outro lugar.
Perde-se a chance de aparecer na sua seção eleitoral habitual, de retomar o convívio no colégio perto de casa, de cumprimentar os mesários de sempre (será que envelheceram?) e de sentir o friozinho na barriga apertando as teclas, até ouvir ao final aquele barulhinho simpático de missão cumprida.
Penso que muitas pessoas, como eu, não conseguirão regressar a tempo para dar sua contribuição nas urnas e optar pelos candidatos a prefeito e vereador prediletos.
Com o aeroporto Salgado Filho fechado e estações de Porto Alegre da Trensurb ainda inativas, creio que o número de abstenções baterá seu recorde, o que potencialmente desequilibrará o pleito. Existe um imenso contingente de moradores da Região Metropolitana que votam na Capital, e não terão o costumeiro transporte pelos trilhos.
A enchente segue causando estragos. É uma inundação agora a seco, que invade os nossos hábitos e dificulta o deslocamento com avarias um tanto definitivas.
Se, no primeiro turno das eleições de 2020, a abstenção já foi alta, com 33,08%, pode ser que ela passe de 35%. Talvez os votos aptos fiquem na casa dos 60%. Quase metade da população não irá votar.
O que essa significativa parcela fantasma decidiria? Não deixa de ser uma dimensão paralela do multiverso, uma hipótese que jamais será decifrada.
Um de meus maiores medos está no livro Ensaio sobre a Lucidez, do Nobel português José Saramago. Num país fictício, computados os votos, verifica-se que na capital cerca de 70% dos eleitores votaram em branco. A eleição é repetida no domingo seguinte, e o número só aumenta, ultrapassando os 80%.
Nessa eleição imaginária, não houve nenhum protesto nas ruas, nenhuma mobilização de repúdio. Trata-se de um boicote silencioso, dentro da mais pacata normalidade. O governo instaura uma caça às bruxas, para detectar de onde partiu o movimento, numa blitz policial acima da lei e da ordem, invadindo as casas e prendendo suspeitos. O que os mandantes não entendem é que a unanimidade da inadimplência foi feita de uma teia casual de individualidades. Não existe um rosto de oposição, apenas o ranço generalizado e a descrença no processo eleitoral.
A apatia, como demonstra o Ensaio sobre a lucidez, é a maior violência possível numa eleição.
Menos mal que o enredo de Saramago seria inviável no Brasil. Pois os votos brancos e nulos são descartados na apuração dos resultados. Unicamente os votos válidos, dos aptos, são contabilizados para identificar os eleitos. E, mesmo que tenhamos 50% dos eleitores anulando o voto, as eleições permanecem válidas.
O que não devemos perder é a esperança de melhorar e a confiança de fazer a diferença.