Depois que os pais completam 80 anos, não se deve mais brigar com eles. Não se deve mais discutir.
Não é transigência, mas lucidez diante do pouco tempo que resta para viver ao lado deles.
Não é suportar tudo, mas aprender a conviver.
Haverá espaço para conselhos, advertências, reprimendas. Nada, porém, que se aprofunde numa ruptura, ou num silêncio de amuo, ou no extremo de cortar a comunicação.
Se eles não querem remédios, se dispensam cuidados, se recusam tratamentos, baterei o pé, mas sempre com a mão livre para ser estendida. Argumentarei com afeto, não mais com a violência do distanciamento.
É uma época crucial, um fair play da existência, em que não dá para sair de perto, ou empacar em birra, ou ficar de mal.
O primeiro passo para esse discernimento é não mais desejar mudá-los. Aceite que eles são daquele jeito. Já consolidaram as suas personalidades e temperamentos. Tanto as virtudes quanto os defeitos estão maduros. Ajustes podem ser feitos, não transformações radicais.
Tomei essa decisão na minha vida. Divirjo deles quando inevitável, mas não mais ralho com os meus pais.
Não importa o que aconteça. Nenhuma opinião contrária tirará o meu ânimo de visitá-los ou de dividir longos telefonemas. Não mais polemizo. Não mais constranjo. Não mais me irrito. Não mais regurgito traumas ou recalques. Acabaram as possibilidades de hostilidade futura.
Meus pais estão com 85 anos. Nenhum desentendimento será maior do que o amor. Eles contam com o direito de se aborrecerem comigo, o direito de se decepcionarem comigo, o direito de se mostrarem descontentes comigo.
Eu não, não desfruto desse privilégio. Eu me farei de sonso quando eles gritarem ou se atrapalharem em crises de impaciência.
Não há mal ou bem que perdure. Na velhice, os humores são sensíveis e voláteis. Da mesma forma que eles explodem com um problema, eles se pacificam com perguntas da rotina.
O que me cabe? Manter-me atento e acessível a qualquer necessidade.
Guardo algumas lições na minha algibeira:
- Não se escuta um pedido de socorro estando longe. Portanto, crie proximidades.
- Ninguém se confessa diante da pressa. Portanto, ofereça disponibilidade para conversar. As urgências surgem no meio das banalidades.
- Ninguém nega carinho. Portanto, o fato de você se preocupar com eles, procurar saber como estão, por onde andam, já serve para consagrar suas boas intenções.
Todo dia é uma eternidade para quem passou dos 80 anos. Vigora uma outra régua cronológica.
Para o jovem, o adiamento é apenas deixar para amanhã. Para o idoso, o adiamento é visto como abandono, é deixar para nunca mais.
O que não admito é perdê-los no decorrer de um atrito, no calor de um estremecimento, pois a culpa se aproveita dos pequenos isolamentos. Não seria justo conosco, com a nossa história, com o conjunto de nossa amizade.
Não tenho medo de que morram, tenho medo de morrer para eles.