Por que as mães trocam os nomes dos filhos? Não é pela pressa, ou pelo malabarismo para atender a várias demandas simultaneamente, ou por insuficiência de atenção.
Eu estudei o comportamento de minha mãe. Dediquei o meu tempo a longas observações de nossos últimos diálogos, e cheguei a uma conclusão poética (mais do que científica).
Com 85 anos, é comum ela embaralhar os nomes de seus quatro filhos.
Pouco sou eu em nossos encontros. Às vezes me chama de Rodrigo, outras vezes de Miguel, e ainda é capaz de me chamar de Carla, substituindo até o gênero.
Não a censuro, não a reprimo: permito que o papo flua. Na maior parte dos momentos, ela própria se corrige. Mas nem sempre toma consciência do seu discurso. Tem horinhas de descuido em que ela não percebe o erro e libera a sua passagem.
Apesar da idade avançada, Maria Elisa não atravessa nenhum processo de demência, nenhuma dificuldade de memória, nenhuma falha cognitiva. Nada que possa ligar o nosso alerta de perigo para providenciar bateria de exames. Continua lúcida e ativa. Continua coerente e perspicaz.
Existe uma lógica no seu lapso. Não é uma confusão sem propósito. Eu, inclusive, caracterizaria como um ato de plena saúde emocional. É excesso de amor.
Qualquer mãe, diante de uma conversa com um só filho, repassa involuntariamente a lista de chamada de todos os filhos.
Não representa, portanto, um acidente, ou um descontrole do raciocínio, ou um engarrafamento de recordações.
Reparei num detalhe decisivo da linguagem de minha mãe: ela sempre troca o meu nome pelo nome de um filho que não está ali. Pelo nome de um filho que ela gostaria que também se fizesse presente.
É uma forma de nos convocar, um por um, de volta à mesa. Como se o almoço estivesse servido, como se a comida fosse esfriar.
Ela não me chama de Carla quando a Carla está conosco, ou de Rodrigo quando o Rodrigo está conosco, ou de Miguel quando o Miguel está conosco.
Este é o ponto: o esquecimento aparente é um lembrete do seu coração. Onde o nó da carência mais aperta.
Trata-se de um ato falho. Ela não deixa nenhum rebento para trás. Ela não admite que alguma cria fique distante dali. Persiste nela um ideal de igualdade: de se doar e de se repartir para todos.
Quando ela me chama pelo nome de um dos meus manos, já entendi que não quer provocar cena de ciúme, ou indicar sua preferência, tampouco desprezar a minha companhia. É a saudade falando por ela. É aquela pessoa que ela deseja que a visite. É justamente aquela pessoa que mora longe ou experimenta um período mais atarefado e conturbado.
É o jeito que a mãe achou dentro de si para tentar nos reunir de novo. Ela nunca troca o nome dos presentes. São efeitos de uma abstinência sentimental. Habitualmente traz à tona o filho de que vem sentindo a maior falta, alguém que está louca para abraçar, mostrando que não aguenta mais esperar. É seu grito atrapalhado na janela da alma: “venha logo!”.