Pertenço à geração da imperfeição. Quem tem mais de 40 anos vai entender a minha sentença.
Nada no passado era límpido, cristalino, harmônico. Nem as imagens, nem os sons.
O erro fazia parte da nossa rotina. Esperávamos o ruído. Aceitávamos os rascunhos. Nossa tecnologia previa as dissonâncias.
Havia chuvisco na televisão. Havia canção parada no vinil, obrigando-nos a colocar a agulha para frente para sair da repetição. Havia os grunhidos das fitas K-7 quando o rolo escapava das roldanas e era mascado pelo aparelho toca-fitas, o que nos exigia rebobinar a fita com caneta Bic. Havia fogão que dependia dos fósforos. Havia as gralhas na folha escrita na máquina de escrever, apagadas devidamente com liquid paper, que apenas aumentava os borrões com as manchas brancas. Havia as ligações telefônicas com linhas cruzadas. Havia as transmissões de rádio com chiado. Havia o preenchimento do cheque com a pior caligrafia possível.
Dávamos um desconto.
Talvez o meu antecedente com as falhas tenha gerado a minha convivência pacífica com as péssimas fotografias.
Não ligo para como eu vou sair nos retratos. Sou adepto de uma maneira anacrônica e extinta de enxergar o mundo, sem sofrer com a beleza e o resultado final, mais preocupada com a informação. É um traço marcante de minha faixa etária.
Fui criado na época da revelação. Como eram poses contadas na máquina — 12, ou 24, ou 36 —, reveladas em papel no estúdio, não tínhamos como reclamar.
Eu me acostumei com olhos vermelhos, com a sombra da mão no visor, com registros tremidos, com cabeças cortadas. Você pagava, inclusive, pelas fotos ruins. Não tinha essa de só levar as fotos razoáveis, decentes, nítidas.
Num flagrante da família, ninguém olhava para o mesmo ponto. Restavam desavisados que voavam distraídos com as pupilas e se perdiam no momento de “olhar o passarinho”.
Por isso, não reclamo de nenhuma selfie ou pose na era do celular.
Já minha esposa jamais se mostra satisfeita, principalmente quando sou eu que estou atrás da lente.
Detectando a minha inaptidão digital, e ultrapassando o seu papel de modelo, Beatriz começou a me dirigir nos bastidores:
— Agora me pegue caminhando, agora use o ângulo de baixo, agora o de cima, agora o de lado.
Eu me ajoelho, eu me deito no chão, eu subo em pedras, eu me esfolo, mas não adianta: nunca consigo lhe agradar.
Diante de cartões postais, como Torre Eiffel, eu sei que irei sofrer, que a beleza do lugar custará caro para mim: gastarei horas buscando acertar uma única fotografia para ela.
No fim, Beatriz observará o acervo de centenas de tentativas na telinha, excluirá todas e comentará com ironia:
— Como fotógrafo, você é um ótimo escritor.
Afora nosso DNA histórico de complacência aos defeitos, não exercitamos a paciência, muito menos a vaidade.
Existe alguma mulher feliz no planeta com as fotos feitas pelo seu marido quarentão, cinquentão?
Duvido, esses homens tiram fotos com igual capricho com que passam o protetor solar na esposa.