Minha esposa gosta de um doce que não é de vó, mas de bisavó: doce de cidra. Ela se delicia com aquelas raspas verdes, cristais de sua esperança.
Eu imaginava que só ela apreciasse esse quitute na face da terra, mais ninguém. Eu me enganei. Há uma legião de fanáticos.
Existe até uma canção de Rolando Boldrin para endeusar o seu gosto, envolvendo uma história de amor. No caso do famoso apresentador do Som Brasil, ele teve uma desilusão com uma doceira de olhos verdes:
Quem não conhece um docinho bem caseiro Que hoje enfeita os tabuleiros das festas do interior É tão verdinho que o olhar da gente vidra Chama-se doce de cidra, com um pouquinho de amargor O amarguinho que ele tem inofensivo Não é doce enjoativo, é gostoso de comer
Doce de cidra é antigo, com raízes na culinária portuguesa. É feito das frutas cítricas após dias de molho, num verdadeiro banho de depuração.
Parece que quanto mais envelhecemos, mais retornamos às sobremesas da meninice.
Comer passa a ser o mesmo que recordar. Não são mais operações distintas. Você busca reprisar as refeições familiares e suprir a falta que sente de todo mundo que partiu.
Talvez seja o nosso ímpeto para recuperar a casa cheia, a vida daquela época repleta de promessas.
Resgata-se um período mental de liberdade gustativa, em que não havia restrições com a glicose, ou medo da diabetes, muito menos economia com as gemas dos ovos.
Você vai querendo repetir o que se tornou raro. Vai se tornando raro ao repetir o passado.
Eu era apaixonado por brigadeiro de cacau, por branquinho, por panelinha de coco, por pastel de nata, por queijadinha, por quindim, por guloseimas pequeninas e explosivas de vitalidade. Hoje só me interesso pela estética e o perfume do pudim de leite.
Prevalece um detalhe na transformação de comportamento. Abandonei a porção individual pela coletiva, servida em vasilha ou porcelana, a ser dividida com os outros.
O pudim de leite virou minha obsessão. Odiava a casca da cobertura. Hoje devoro primeiro o recheio, para depois saborear lentamente a crocância do açúcar queimado com a calda.
A arte já começa ao cortar uma fatia. Devo controlar a força de minha mão para não abusar com uma incisão transversal e levar o pudim inteiro para a mesa.
Não é que eu fiquei mais tradicional, eu tenho muito mais saudade de quem já fui.
Minha existência mudou de parâmetros, abolindo preconceitos alimentares.
Agora respeito o uso do cravo no beijinho ou no arroz-doce. Antes, acreditava que era um desperdício aquele adorno, aquela estaca da especiaria. Eu apenas reclamava do trabalho de tirá-lo.
Agora reverencio o manjar, o bolo gelado de coco e abacaxi, o flan de coco, o tiramissu. Nem mais faço piada com o pavê.
Agora entendo por que a ambrosia e o sagu jamais vão perder a realeza.
O que mais ansiamos é roubar a geladeira da infância novamente. Aliás, o nosso coração se converte na própria geladeira.
Nossas crianças interiores são famintas.