Tenho visto com frequência crianças assassinadas porque “atrapalham” o romance. Crianças com as suas infâncias roubadas por omissão da mãe ou do pai, que deixam o parceiro ou a parceira agirem com extrema violência, castigando meninos e meninas indefesos e vulneráveis sem piedade. Crianças com seu futuro subtraído de repente, espancadas, vilipendiadas e torturadas pela madrasta ou padrasto, em crimes acobertados pelos parceiros para manter a fachada do casamento.
Amor ao filho está acima do amor conjugal. O filho é para toda a vida, a relação é até onde existir felicidade.
O que vem ocorrendo é uma perigosa inversão: a criação dos filhos tem sido refém dos caprichos sádicos do relacionamento.
São casos e casos de pessoas que não nasceram para a maternidade ou paternidade, e querem se livrar da responsabilidade tutelar — como se fosse um estorvo, um incômodo — para desfrutar da desobrigação do namoro.
Uma série de homicídios no estado se enquadram naquilo que chamo de síndrome de Saturno. De acordo com a mitologia romana, Saturno devorou os filhos que teve com a esposa Reia, por medo de que um deles o destronasse.
Ou seja, o filho surge como uma ameaça para o reinado do marido ou da esposa, tirando o tempo da convivência a dois. Ele sobra na dinâmica familiar.
O julgamento da morte de Anthony, que começou nesta quinta-feira (11), no Tribunal de Tramandaí, no Litoral Norte, é uma ilustração dos efeitos nocivos de um casal que privilegiou o egoísmo fatal.
O curioso é que o júri sucede em uma semana à condenação de Yasmin Vaz dos Santos Rodrigues, 28 anos, e Bruna Nathiele Porto da Rosa, 26, por torturar, matar e arremessar Miguel, de 7 anos, respectivamente filho e enteado, no rio Tramandaí, em julho de 2021.
Os eventos são parecidos pela motivação torpe, e ambos transcorreram no Litoral Norte (o do Miguel em Imbé e o de Anthony em Cidreira).
Em outubro de 2022, Anthony, de dois anos, chegou inconsciente ao posto de saúde, onde se constatou que ele havia sofrido múltiplas lesões. O menino não resistiu aos ferimentos e faleceu no local.
O que ele fez de errado? Chorou! Estava chorando, como faria qualquer garoto em pânico, encurralado com gritos e ameaças.
O padrasto, que tinha 21 anos na época do ocorrido, foi acusado de agredir a criança com socos, tapas, puxões e empurrões, com tal agressividade que ela desmaiou. Respondia por tortura e homicídio qualificado de motivo fútil, cruel, recurso que dificultou a defesa da vítima e cometido contra menor de 14 anos.
Não se tratou de uma palmada corretiva, o que tampouco seria certo, mas uma sequência aterrorizante de murros, acarretando politraumatismo contuso (traumas de diversas naturezas comprometendo órgãos essenciais).
O bebê acabou literalmente demolido.
Agora, mentalize o que significa a desproporção de um adulto bater num serzinho incapaz de se defender, de apenas 12 quilos. É o equivalente a um atropelamento de uma jamanta sobre um triciclo. Não há tolerância aceitável.
A pequena vítima não conseguiu relacionar o que fez para provocar aquilo.
Qual foi a reação da mãe, da qual esperaríamos que protegesse o seu filho acima de tudo? Ela foi acusada de cumplicidade, apontada como conivente às agressões do seu companheiro.
O par não deve ser julgado unicamente pelo fim trágico de Anthony, mas pela vida miserável e dolorida que infligiu a ele. A sentença do julgamento saiu no início da madrugada desta sexta (12): o padrasto da criança foi condenado a 58 anos e quatro meses de reclusão em regime fechado por homicídio qualificado e foi absolvido da acusação de tortura. A mãe, que já estava em liberdade, teve absolvição da acusação de tortura.
Na sua breve existência, Anthony teve que arcar com sofrimentos tão longos e inexplicáveis. Talvez tenha partido sem conhecer sequer um dia feliz, um dia de paz.