3.721 famílias no Rio Grande do Sul desejam adotar uma criança. Anseiam por segurar um filho no colo, por niná-lo nos braços, por lhe dar de comer e de amar, por entoar cantigas para lhe conferir segurança e tranquilidade.
A despeito de uma longa fila de pais querendo realizar o seu sonho, uma mãe e uma madrasta em Imbé, no Litoral Norte, escarneceram o privilégio da maternidade e alcançaram o extremo oposto — a desumanidade. Protagonizaram o pesadelo do menino Miguel, de 7 anos, assassinado pelo casal, posto numa mala e jogado nas águas do rio Tramandaí.
Ele estava tão magro, tão desnutrido, tão pele e osso, tão indigente que acabou entrando numa malinha. Morreu em posição fetal no escuro dos maus-tratos, no ventre do abandono, com sua esperança fechada por um zíper.
Conforme a denúncia do MP-RS, a dupla desovou o corpo no rio, após o homicídio arquitetado e consumado entre os dias 26 e 29 de julho de 2021. A morte decorreu de agressão física, insuficiência de alimentação, uso de medicamento inadequado e omissão de atendimento à saúde da vítima.
O motivo do homicídio revelou-se o mais torpe e banal possível: o menino estaria atrapalhando o romance materno. Como aconteceu a Rafael, 11 anos, em Planalto (RS), e Bernardo, 11 anos, em Três Passos (RS), crianças abortadas em vida pelos seus pais.
Não só o fim de Miguel se mostrou cruel, a sua história conseguiu ser ainda pior, sem chance de pedir socorro para a escola, já que a sua mãe justificava a ausência na turma dizendo que ele estava com asma.
As duas mulheres submeteram a criança a intenso sofrimento. Em vez de ganhar carinho, Miguel era trancado dentro de um pequeno guarda-roupa, com as mãos amarradas e imobilizadas com correntes e cadeados, por prolongados períodos. Alimentava-se de modo errático, espaçado e imprevisível. Via-se obrigado a fazer as necessidades fisiológicas no interior do armário, inclusive compelido a limpá-lo como punição. Por ser um espaço exíguo, a criança tinha contato com suas próprias fezes.
No fim, ela sempre viveu dentro de uma mala, a um passo de ser despachada.
Não bastando o flagelo físico, Miguel terminou humilhado pelas palavras, vítima dos reflexos monstruosos da covardia de suas responsáveis, coagido a copiar frases como “eu sou um idiota”, “não mereço a mamãe que eu tenho”, “eu sou ladrão, “eu sou ruim”, “eu não presto”, “eu sou um filho horrível”.
Com os bordões autodepreciativos, assassinaram Miguel várias vezes ao dia, destruindo as suas defesas intelectuais e morais, fazendo com que ele acreditasse, pela sua caligrafia tímida e insegura, que não servia para nada.
Não tenho dúvida de que consistiu em um dos crimes mais hediondos e brutais do estado.
Depois de vinte e sete horas de julgamento, com encerramento na sexta-feira (5), o Ministério Público, representado pelos promotores André Tarouco e Karine Teixeira, fez jus à indignação popular. O júri acolheu todas as teses de homicídio triplamente qualificado.
A mãe recebeu de punição 57 anos, um mês e dez dias. A madrasta teve de condenação 51 anos, um mês e 20 dias.
A diferença entre as duas sentenças forma quase a idade de Miguel. Do indefeso Miguel. Do agora livre da impunidade Miguel.
Se o pequeno corpo jamais foi encontrado, a sua imensa alma, torturada em breve existência, finalmente foi localizada, retratada e justiçada.