Temos que lidar com o constrangimento e o vexame nacional.
Temos que absorver as críticas mais do que justas.
Temos que radicalizar as nossas transformações de comportamento em prol da empatia.
O que testemunhamos na serra gaúcha, em Bento Gonçalves, com 196 baianos trabalhando em condições insalubres, análogas à escravidão, deve servir de ponto de virada para mudar a mentalidade da mão de obra na nossa vitivinicultura.
Em primeiro lugar, não dá para confiar nos intermediários, em representantes duvidosos de recursos humanos a pacotes módicos, que se valem do desespero social para obter o máximo de lucro.
Compreende-se a tendência à simplificação das despesas de empresas a partir da terceirização. Porém, de modo nenhum, há como prescindir da fiscalização para o bem-estar de cada colaborador.
Não é possível que ele venha de longe em busca do sonho de um emprego, ainda que temporário, fique afastado de sua família durante meses, acumule sacrifícios de adaptação e de saudade numa cidade nova e diferente, e não obtenha moradia decente, comida, dignidade e salário em dia.
O pesadelo da clandestinidade que acabamos de viver no Rio Grande do Sul é similar ao despautério da construção dos estádios em Catar para a Copa do Mundo, quando cerca de 500 imigrantes morreram devido a jornadas de trabalho de mais de 14 horas por dia sob forte calor, sem folga e com tratamento degradante.
Aquilo que parecia uma tragédia distante, uma brutalidade inexplicável de um regime autoritário, estava acontecendo também debaixo dos nossos narizes, nas fuças da nossa democracia.
E se a letalidade não foi atingida, e se a tragédia não foi maior, é que existiu antes a denúncia e intervenção da Polícia Federal e do Ministério do Trabalho e Emprego.
Não é uma conduta reparadora, como consumidores, boicotar os nossos produtos como represália a um comportamento inaceitável. É uma atitude revanchista que só precipitará falências, e não a correção do rumo empresarial.
O que deve transcorrer de imediato é a recolocação funcional com o pedido de desculpa a todos os lesados e a respectiva indenização pelas privações durante o período. Mandar de volta para casa não resolve a injúria dos maus-tratos.
A qualidade humana do emprego interfere no produto final.
Não bastam os melhores vinhos se estão sendo feitos com a exploração desumana de seus lavradores.
Não adianta nos posicionarmos com destaque no mercado internacional ou ganharmos prêmios de excelência pela tecnologia empregada nas vinícolas, ocultando como alicerce uma xenofobia monstruosa.
Nossas uvas estão avinagradas pela ganância. Que, na próxima safra, esmaguemos os preconceitos com os pés, dentro dos lagares da consciência.
E lembremos que quem criou a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) foi um gaúcho, Getúlio Vargas. Neste ano, ela completa oitenta anos. É uma octogenária que não merecia ter visto isso.