Quantos trabalhadores morreram no Catar antes da Copa do Mundo de 2022, principalmente nas obras? A delicada pergunta que se tornou o centro das críticas ao emirado parece destinada a nunca ter uma resposta precisa.
Um dos números que dispararam a polêmica foi o divulgado pelo jornal britânico "The Guardian" em fevereiro de 2021, segundo o qual 6.500 trabalhadores teriam morrido no Catar desde que o país foi anunciado como sede da Copa do Mundo em 2010.
O jornal, que trabalhou com dados fornecidos pelas autoridades de cinco países do Sudeste Asiático, explicou que "as certidões de óbito", nas quais se baseou, "não estão classificadas por profissão, ou local de trabalho".
Muitos veículos de comunicação ocidentais simplificaram a lista, no entanto, atribuindo esse valor apenas às obras dos estádios da Copa do Mundo, acidentes, ataques cardíacos, devido ao calor, ou ao cansaço, entre outros.
Presente em Doha desde 2018, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) lamentou em novembro de 2021 que esse número tenha sido "amplamente reproduzido (...) sem incluir, sempre, o contexto (...) e atribuindo essas mortes, com frequência, à construção dos estádios da Copa do Mundo".
- Deficiência estatística -
As autoridades do Catar negam esses números, categoricamente, e falam de "calúnia", "racismo", inclusive ameaçando adotar ações legais.
"Tomamos um amplo leque de medidas (...) para melhorar a vida de todos os trabalhadores no Catar", diz à AFP um funcionário do governo. "Há trabalho a ser feito", mas "ninguém pode contestar, legitimamente, que a Copa do Mundo acelerou o progresso em nosso país".
A Confederação Sindical Internacional, que negocia reformas sociais com as autoridades, também fala em "avanços significativos", ressaltando, também, que ainda há trabalho a ser feito.
O Comitê Supremo da Organização da Copa anunciou o número de três mortos apenas em obras de infraestrutura diretamente relacionadas com o Mundial, principalmente nos estádios. Este balanço também foi mencionado pelo presidente da FIFA, Gianni Infantino, em maio.
Nenhuma ONG internacional renomada respaldou até o momento o número de 6.500 óbitos. A Amnistia Internacional e a Human Rights Watch (HRW), por exemplo, pediram à FIFA que crie fundos de indenização para os trabalhadores migrantes, sem dar um balanço.
"Este número se tornou icônico, porque responde a uma pergunta que ninguém pode responder", afirma Jean-Baptiste Guégan, professor e autor do livro "Géopolitique du sports".
Destacando a insuficiência dos dados disponíveis, a OIT documentou 50 acidentes de trabalho fatais em 2020, e 500 feridos graves.
"A maior parte (das vítimas) eram trabalhadores imigrantes de Bangladesh, Índia e Nepal, principalmente da construção civil. Quedas e acidentes de trânsito são as principais causas de ferimentos graves, seguidos da queda de objetos em canteiros de obras", relatou a OIT.
Um dos principais motivos dessa imprecisão está, segundo fontes ouvidas pela AFP, nas deficiências estatísticas do Catar.
Para a OIT, essas lacunas "tornam impossível estabelecer um número categórico".
Nesse sentido, seus representantes pedem "que se aumente os esforços para investigar lesões, ou mortes, que possam estar relacionadas ao trabalho, mas não estão classificadas como tal".
- Calor extremo -
"Sem termômetro é impossível verificar a temperatura", diz um sindicalista francês que visitou as obras do Catar diversas vezes. Em termos comparativos, em 2019, o setor da construção na França registrou 215 mortes.
"Mas, num país com 20 vezes mais habitantes" que o Catar, diz fonte próxima de ONGs internacionais.
Sem uma investigação sobre "as mortes de funcionários, é difícil saber quantos morreram pelo calor extremo, mas não há dúvida de que o fato é extremamente grave", disse o diretor do Programa de Justiça Social e Econômica da Anistia Internacional, Steve Cockburn.
"Estejam, ou não, relacionadas com as obras no Mundial, milhares de mortes na última década continuam sem explicação, e pelo menos centenas delas estão, provavelmente, relacionadas com condições perigosas de trabalho", acrescentou.
"É muito fácil se esconder por trás dessa imprecisão. Embora as autoridades catarianas não tenham premeditado essas lacunas, agora são um escudo", analisa uma fonte próxima a ONGs internacionais.
Em outubro, no canal France 5, o jornalista francês Quentin Müller, coautor do livro "Les esclaves de l'homme pétrole" ("Os escravos do homem-petróleo", em tradução livre), mencionou uma grande lacuna: "Não temos as estatísticas dos países africanos", a segunda região de origem dos trabalhadores imigrantes no Catar, onde os estrangeiros representam 90% dos quase três milhões de habitantes.
Outro dado que falta, segundo ele, são as mortes dos trabalhadores que voltaram doentes, principalmente por "problemas renais", devido à má dessalinização da água fornecida aos trabalhadores.
* AFP