Foi preciso adaptar nosso olhar ocidental para enxergar e entender sem julgar tudo que representou a Copa do Catar. Desvendar culturas faz parte de viver um mundial de futebol, mas esse era diferente. O primeiro do mundo árabe.
Tudo que calou, gritou. A boca fechada dos alemães pela censura de não poder apoiar a causa que gostariam. Quando os joelhos dobraram, nem sempre foi só pela oração tão importante para os muçulmanos, repetida cinco vezes por dia em toda a cidade. O ingleses se ajoelharam também em protesto por não poder falar de amor. Um jornalista e sua bandeira de Pernambuco barrados na porta do estádio porque os anfitriões acreditavam que o arco-íris do brasão do Estado era símbolo do movimento LGBTQIA+, criminalizado nessas terras.
O anfitrião da Copa de 2022 abriu as portas para o mundo, mas não nos deixou entrar verdadeiramente. A luz dos arranha-céus gigantescos não foi suficiente para iluminar o proibido, o velado, o não necessariamente explicado. A Copa sem bebida álcoolica, sem aquela clássica cervejinha gelada. A Copa dos homens protagonistas, em um lugar em que as mulheres ainda buscam mais espaço. A principal delas, uma Sheika, que idealiza uma cidade voltada para a educação, com o principal objetivo de fortalecer a presença a mulher na ciência.
Foi justamente no estádio da cidade da educação, o Education City Stadium, que o Brasil foi eliminado nas quartas de final. O consolo veio ainda dentro de campo, de um pequeno rival. O menino croata que correu para abraçar Neymar. Quando os seguranças tentaram barrar, o ídolo da nossa seleção fez questão de aceitar o carinho. A solidariedade transcendendo a cor da camisa.
Com a alcunha de país do futebol, criamos a maluquice de achar que por isso seremos sempre campeões. Perder uma Copa? Fracasso completo. Será? Ser o país do futebol vai muito além dessa frase. No Catar, fomos alegria, dança, ginga, sorriso, festa, diversão, leveza. Voamos como pombos. É a soma de tudo isso que nós somos. O Brasil segue sendo o país que encanta o mundo. "É o Mundial que perde sem o Brasil", ouvi de um marroquino.
Quantas lições a zebra da Copa nos trouxe. O Marrocos — único país africano a chegar em uma semifinal na história. O país árabe, muçulmano, mais humano. Em que a mãe comemorou com o filho no gramado. Foi como uma mãe que aprende a lidar com seu primeiro filho, com erros consideráveis e acertos lindíssimos, na tentativa de criar uma identidade, que se comportou o país anfitrião dessa Copa do Mundo.
Se existisse uma caixa de memórias para guardar tudo que descobrimos aqui, ela certamente estaria à venda no Souq Waqif. Ao andar pelos corredores abarrotados e coloridos, com torcedores de todo o planeta vestindo as camisas dos seus times, seria preciso ter muita paciência na negociação com os árabes pelo melhor desconto, mas até nisso haveria beleza, porque ter vivido essa Copa foi um aprendizado sobre valorizar o tempo. "Now is all", "o agora é tudo" foi o slogan do mundial. E, sim, cada dia, hora, minuto, segundo é tudo que temos. Das vivências mais corriqueiras e triviais, aos momentos grandiosos como esse.
Não há como medir o valor do legado que este Mundial deixa aos árabes. Na terra em que se constrói tudo que cabe na imaginação, no mundo dos sonhos, deixo o Catar cantarolando a música que tantas vezes nos embalou por aqui e que tem uma letra absolutamente representativa para resumir o que foram esses dias: olhem quem somos, somos os sonhadores, fazemos acontecer, porque acreditamos, porque podemos ver, aqui estão aqueles que tem paixão, que fazem acontecer, respeito.
Respeito. Nós aprendemos com os árabes que outros mundos existem. Mesmo que diferentes e até distantes do nosso. Lá ou aqui, no Rio Grande do Sul ou no Catar, o futebol é a representação de que onde há felicidade sempre é possível ser mais e melhor, se estivermos juntos.