"É minha escolha". Essa frase foi repetida algumas vezes pela paquistanesa Kiran Sohail enquanto conversávamos sobre o uso da abadia, a túnica comprida preta, e o hijab, o lenço que cobre os cabelos, típicos das mulheres árabes.
Kiran tem 36 anos e vive no Catar desde criança. Ela é de uma família muçulmana e contou que decidiu usar esse tipo de vestimenta porque se sente bem com ela.
— Minha mãe, por exemplo, não usava. Ela me viu assim, gostou e passou a usar também — contextualizou.
O mesmo aconteceu com a filha, de sete anos, que já tem seu próprio hijab. Quando perguntei se gostava, a menina respondeu que se sentia muito bonita com ele.
— Mais poderosa? —eu completei.
— Exatamente! — disse ela antes de sair correndo para brincar com o irmão mais novo.
Para a família de Kiran, o traje é escolha, mas nem sempre é assim.
Antes de encontrar a sorridente e simpática Kiran, minha missão no Souq Waqif, em Doha, era gravar uma reportagem para a RBS TV encontrando alguém para me explicar como usar as roupas árabes. Circulei por entre as vielas abarrotadas de lojas de tecidos e trajes. Entrei em algumas e encontrei muitas mulheres fazendo compras. Tentei pedir orientações e elas explicaram que não poderiam falar em frente à câmera. Várias taparam os rostos para não aparecer, mesmo que eu dissesse que não estava gravando e que não faria isso sem autorização.
— Minha família não permite — respondeu uma delas, claramente desconfortável com a nossa presença.
Outra sugeriu que eu procurasse uma policial para me ensinar sobre as vestimentas. Em meio a muitas roupas coloridas, estampadas, bordadas, meu pensamento me levou para a escuridão da opressão. Na minha visão de mulher, branca, ocidental, com uma condição social confortável, me parece no mínimo estranho que mulheres se submetam a exigências das famílias ou dos maridos dessa forma. Aí encontrei Kiran, que me trouxe outra perspectiva.
Ela estava fazendo uma pintura nas mãos com hena, e entrei a fila atrás dela para experimentar também. Sorriu receptiva para mim e começou a puxar assunto, algo surpreendente diante do que tenho vivido nas interações por aqui. Kiran me explicou sobre a pintura das mãos:
— Nós fazemos isso porque é parte das festividades e dos valores islâmicos, e também porque as mulheres do profeta e membros da família começaram a usar para representar felicidade.
Kiran estava feliz. Tinha saído pela primeira vez com os dois filhos durante o período de Copa. Nunca tinha andado de transporte público e havia recém feito sua estreia no metrô. Para ela, receber pessoas de todo o planeta no Mundial é uma oportunidade de mostrar o amor que tem pela própria cultura.
Durante nosso bate-papo, ela me convidou para finalmente experimentar me vestir como uma árabe. Perguntei se não seria desrespeitoso, e ela repetiu:
— É uma escolha sua.
Enquanto procurávamos a loja, comentei da escolha pelo preto. Kiran respondeu:
— Uso primeiro porque é prático. Depois tem a questão de não mostrar as curvas do meu corpo, porque fico desconfortável com o olhar masculino.
Depois de araras e mais araras de roupas que pareciam todas iguais, falei que não via diferença entre uma e outra. Afirmação que a Kiran contrapôs:
— A qualidade dos tecidos e do corte e até alguns pequenos bordados diferencia uma da outra.
Ela escolheu o que achou o mais bonito e me ajudou a vestir. Entre risadas, eu só pensava que há muito mais a desvendar da mulher árabe do que o que está por trás da vestimenta. Ter encarado vários ângulos dessa vivência foi uma grande oportunidade de aprender mais sobre mulheres e sua culturas e as muitas nuances da vida.