Chuva intensa, corpos hídricos fora dos leitos, cidades inundadas. Esses são cenários observados em duas crises climáticas recentes: em maio, no Rio Grande do Sul, e na região de Valência, Espanha, nesta semana.
Os fenômenos apresentaram características físicas distintas, mas a tragédia europeia tem semelhanças ao que foi observado nos municípios gaúchos, dizem especialistas. O aquecimento do planeta deve ser considerado na análise da força dos eventos.
A agência meteorológica da Espanha (Aemet, na sigla em espanhol) aponta que a chuva histórica foi o resultado de um bloqueio atmosférico comum na região. Um sistema de baixa pressão em média e alta altitude atmosférica, conhecido como Dana (Depressão Isolada de Altos Níveis, na tradução para o português), foi responsável por intensificar a instabilidade. Até esta sexta-feira (1º), mais de 200 mortes foram confirmadas devido à enchente.
No Rio Grande do Sul, a situação ocorreu devido a uma área de baixa pressão atmosférica que favoreceu a formação de áreas de instabilidade, além da formação e deslocamento de uma frente fria, potencializadas pelo El Niño, conforme análise do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).
— As duas (situações) são sistemas de baixa pressão, ou seja, regiões onde a pressão atmosférica é menor em comparação com as áreas circundantes, o que causa tempo instável. A diferença é que a Dana ocorre em altas e médias altitudes da troposfera. O que aconteceu no RS em maio foi favorecido pela formação de sistemas de baixa pressão na superfície — explica Henrique Repinaldo, meteorologista da Universidade Federal de Pelotas (UFPel).
A quantidade de chuva foi similar em pontos do RS e da região de Valência, que tiveram recordes históricos nos eventos. O que os diferencia é que, no Estado, o volume foi observado em uma espaço de tempo maior.
Segundo o Instituto Nacional e Meteorologia (Inmet), Porto Alegre registrou 539,9 milímetros em maio, quando o projetado era 112,8 milímetros. Na Espanha, o nível máximo foi contado na cidade de Chiva, com 491 milímetros na terça-feira (29) em oito horas; o resultado supera a chuva anual no ponto, conforme as autoridades espanholas.
Repinaldo cita que a orografia da região espanhola – características geográficas que influenciam o clima e o ambiente – também contribuiu para a chuva atípica originar inundações, algo correlato ao desastre gaúcho.
— No Rio Grande do Sul, a água foi canalizada pelos rios em direção ao Guaíba. Na Espanha, a chuva também caiu em toda a região montanhosa ao redor de Valência e foi levada em direção à cidade.
A origem da umidade que causou a chuva no Estado e na Espanha não é similar, segundo Murilo Lopes, meteorologista da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).
— Na Espanha, um conjunto de tempestades causou uma enchente em um evento que foi mais localizado. No Rio Grande do Sul, tivemos sistemas atuando em uma área maior. As fontes de umidade também estão em diferentes distâncias. Aqui é a Amazônia, que está mais distante; lá é o Mar Mediterrâneo, ao lado da Espanha. Quanto mais perto da fonte, mais rápida é a reposição de vapor d'água para a precipitação — acrescenta.
Para Lopes, a principal semelhança entre os dois eventos é o momento das mudanças climáticas vivido pelo planeta. O ano passado foi o ano mais quente já registrado, segundo o observatório europeu Copernicus; 2024 também tem sido de meses com temperaturas médias acima dos níveis pré-industriais.
— Os oceanos estão aquecidos e há mais vapor d'água na atmosfera. Logo, os eventos extremos se tornam frequentes porque a chuva tem mais umidade disponível para se tornar intensa — resume.
Coordenador-geral de pesquisa e desenvolvimento do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), José Marengo diz aguardar estudos para relacionar a chuva atípica na Espanha às mudanças climáticas.
Não existe lugar no mundo onde uma previsão acerte exatamente quanto choveu.
JOSÉ MARENGO
Coordenador-geral de pesquisa e desenvolvimento do Cemaden
No entanto, pondera que “possivelmente seja o caso” de haver um relacionamento por conta do histórico recente de crises climáticas. Ele cita um estudo de junho da World Weather Attribution (Atribuição Mundial do Clima na tradução para o português), que conecta a chuvarada no RS em maio ao aquecimento do planeta (leia aqui).
— Depois de 2020, temos visto desastres a cada ano, como ondas de calor, frio, secas, chuvas intensas, tufões, furacões, em todo o mundo. Isso coincide com o esperado em um cenário de aquecimento global que leva a mudanças climáticas. O que esperávamos para o futuro já está acontecendo — pontua.
Ele cita que ambos os fenômenos ocorreram no outono, época de transição entre o verão quente e úmido e o inverno frio e seco. Segundo Marengo, outra característica em comum entre os fenômenos climáticos é que as estimativas acertaram a ocorrência dos dois, mas não conseguiram prever o volume registrado.
— Os modelos são uma representação matemática da realidade, mas a natureza é complexa e há processos na atmosfera que não conhecemos e não estão representados. Não existe lugar no mundo onde uma previsão acerte exatamente quanto choveu. É algo que demanda um poder computacional que ainda não temos no mundo — finaliza.