Passados cinco meses da enchente que assolou centenas de municípios gaúchos, o Rio Grande do Sul carece de dados sobre como a chuvarada influenciou os rios, lagos e outros corpos hídricos.
Esse vácuo de informações dificulta a identificação de pontos afetados pelo acúmulo de sedimentos, o que é um empecilho para ações de desassoreamento, dizem especialistas.
O dano é conhecido no canal de navegação, onde dragagens foram feitas e outras deverão ser conduzidas para evitar prejuízos ao fluxo de embarcações no Estado.
Estudos de impacto nos cursos d’água (batimetrias) estão em andamento e há previsão de investimentos para desassorear locais, conforme os governos estadual e federal. Não há data para a divulgação dos resultados dos levantamentos.
Envolvidos no debate separam o assunto em duas frentes. O primeiro é o assoreamento da hidrovia, por onde circulam navios cargueiros: há consenso sobre realizar dragagens periódicas para manter a operação.
As divergências ocorrem nos pontos dos corpos hídricos fora do canal de navegação. Nesse caso, há os que defendem a retirada de sedimentos para reduzir novas cheias, enquanto outros dizem que intervenções do gênero são ineficazes.
Diferença entre desassoreamento e dragagem
- Desassoreamento: é a remoção de sedimentos – areia, terra e lixo – de corpos d'água para restaurar a capacidade de armazenamento e vazão. É um termo utilizado para se referir à limpeza de rios, arroios, córregos, lagos e outros.
- Dragagem: é um processo feito para desassorear cursos hídricos, principalmente trechos utilizados por navios cargueiros (hidrovias). Limpar, alargar, escavar e desobstruir estão entre as ações do procedimento. Dragas são as ferramentas mais empregadas no trabalho (veja, no infográfico desta reportagem, como funciona esse tipo de embarcação)
Desassoreamento para a navegação
A dragagem é utilizada para manter a profundidade dos rios que são utilizados para a navegação. O serviço retira sedimentos transportados devido ao fluxo dos corpos hídricos. Sem essa limpeza, a lâmina d’água se torna rasa e as embarcações podem ficar encalhadas.
— Uma estrada sem manutenção se deteriora até o ponto em que não se consegue mais trafegar com um carro. O mesmo ocorre na hidrovia: sem dragagem, que é a manutenção, vai chegar a um ponto em que não será possível navegar — explica Cristiano Klinger, presidente da Portos RS, empresa pública responsável pelos portos de Rio Grande, Pelotas e Porto Alegre, além da hidrovia, assim chamada a ligação entre eles.
O assoreamento do canal foi acelerado devido ao volume atípico de chuva em maio no Estado. O Guaíba, em Porto Alegre, por exemplo, registrou vazão com valores superiores a 30 milhões de litros por segundo, quando a média fica entre 1 e 2 milhões. Isso fez com que sedimentos de outros pontos da bacia fossem transportados em maior volume para a Capital.
Segundo Klinger, em 2023, a empresa fez batimetrias (análise da profundidade) no trecho e obteve as licenças ambientais para realizar a dragagem neste ano. As cheias no Estado, porém, fizeram com que os sedimentos se acumulassem no canal de navegação e os levantamentos do ano passado ficassem prejudicados.
Por isso, houve a necessidade de novos estudos para dimensionar o impacto da cheia na hidrovia. A empresa também se baseia em informações repassadas por navios e lanchas de praticagem capazes de monitorar a profundidade.
A Portos RS estima que R$ 600 milhões sejam necessários para dragar o acesso ao porto de Rio Grande e o restante da hidrovia.
— Tínhamos um planejamento de investir R$ 100 milhões a cada ano. Esse parâmetro mudou em razão do volume de sedimentos da hidrovia. Se nada for feito, o risco é de que se pare toda a navegação. Nossas ações são para que isso não ocorra — acrescenta Klinger.
O presidente da Portos RS cita dois exemplos da influência da enchente: um navio encalhou no Canal do Furadinho, em Canoas, na Região Metropolitana, quando saía do Polo Petroquímico de Triunfo.
Por isso, está em andamento uma dragagem emergencial no ponto (veja como é no infográfico abaixo). Outro prejuízo é que, depois da cheia, um navio que transporta sebo bovino não pode atracar na Capital por conta do assoreamento do canal.
Além do Furadinho, outros canais também precisam de dragagens emergenciais, segundo Klinger:
- Pedras Brancas (sul de Porto Alegre)
- Feitoria (conecta os portos da Capital e Rio Grande)
- São Gonçalo (liga a Lagoa Mirim com Lagoa dos Patos)
- Caí (no encontro dos rios Caí e Jacuí)
O presidente da Portos RS afirma que existe uma articulação para obter os recursos do governo federal. Se isso não ocorrer, um empréstimo entrará na pauta da empresa.
Cuidado com a retirada de sedimentos
Há falta de estudos sobre o assoreamento de corpos hídricos no Estado, segundo Sofia Royer Moraes, professora da Univates que pesquisa eventos extremos de inundações na bacia do Rio Taquari-Antas. O custo e a complexidade dificultam o mapeamento.
As intervenções devem ser precedidas por batimetrias, análises de mudanças em curva-chave (relação entre vazão e altura da lâmina d'água) e estudo da camada de sedimentos, segundo ela:
— Se constatada a necessidade de dragagem, certamente pode auxiliar na redução de pequenas cheias. No entanto, a dragagem do Rio Taquari durante grandes cheias seria pouco eficaz. Se mal dimensionada, pode causar impactos negativos, como a evolução de processos de erosão e assoreamento.
Dragar não é um processo definitivo: o transporte e a deposição de sedimentos fazem parte de um ciclo natural dos rios, conforme a estudiosa.
Walter Collischonn, professor do Instituto de Pesquisas Hidráulicas (IPH) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), critica o posicionamento em favor das dragagens sem os devidos apontamentos técnicos.
— Concordo (com o desassoreamento) se apontar o local e indicar que houve assoreamento, mostrar os cálculos do benefício na redução do nível da água em uma cheia equivalente à de 2024. Por enquanto, é só especulação — pontua.
O professor afirma que desassorear não é garantia de redução do nível da água em uma enchente. Ele cita a “nova ilha” no Guaíba, mostrada por Zero Hora em julho. Retirar o banco de areia não assegura um nível mais baixo de água no centro da Capital, por exemplo. Conduzir uma dragagem ampla, similar ao que é feito no canal de navegação, segue a mesma lógica.
— Diminuir um metro de profundidade do leito do rio não vai reduzir um metro da água durante a cheia. A redução poderia ser de 20, 30 centímetros. O que adiantaria esse resultado no caso do Vale do Taquari? A dragagem para navegação deve ser feita para o transporte na hidrovia, mas gastar R$ 500 milhões para não reduzir a cheia não é uma boa decisão — pontua.
Desassorear grandes rios é uma “ficção”, afirma Francisco Milanez, diretor-científico e técnico da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan). Ele diz que a limpeza dos corpos hídricos ocorre naturalmente e que aplicar recursos na prática significa desperdício financeiro.
— Desassorear é como enxugar gelo: vai assorear novamente na chuva seguinte. A saída é combater as causas da erosão, que são o mau manejo do solo, o desmatamento e a destruição das áreas de proteção permanente. Isso pode ser feito com a implantação das florestas de encosta, matas ciliares e não se drenar várzeas — diz.
Na avaliação dele, recursos para a dragagem deveriam ser aplicados para a retirada de pessoas de áreas de risco. Iniciativas para construir uma “cidade-esponja” são outras opções, com o investimento em áreas capazes de absorver a inundação em momentos de necessidade, medida adotada em países como a Holanda.
Em defesa do desassoreamento
Criado por moradores de Arroio do Meio, o Grupo Pró-Dragagem e Arborização defende investimentos no desassoreamento de corpos hídricos para evitar cheias no Vale do Taquari, uma das regiões mais afetadas por enchentes. A atuação é para sensibilizar o poder público e a população a resolver o problema. Para eles, a necessidade da intervenção tem como base a experiência dos moradores da região.
— Não existem mais árvores, casas e barrancos. Entendemos que todo este material se encontra no rio (Taquari), que está totalmente diferente. Se nada for feito, cada chuva se tornará uma enchente — diz Rejane Maria Perotti Kerbes, advogada e uma das participantes do grupo.
O movimento promoveu uma caminhada em Muçum, onde recebeu apoio de moradores. O grupo diz que há falta de informações sobre os custos envolvidos na realização do procedimento. No entanto, a urgência do serviço deve prevalecer, ainda que os valores sejam altos para a limpeza dos cursos d’água da região.
— Caro é quando vemos que parte da população perdeu casas, animais de estimação, bens e suas histórias. Caro é a vida ou caro é um valor que deve ser usado para desassorear o rio? Essa é uma pergunta que precisa ser respondida — acrescenta Liselena Bersch Neumann, empresária e também moradora de Arroio do Meio.
A Associação dos Municípios da Região Metropolitana de Porto Alegre (Granpal) defende que recursos federais sejam disponibilizados para estudos e limpeza dos corpos hídricos. Segundo Murilo Machado, prefeito de Triunfo e presidente da entidade, o assoreamento verificado no acesso ao Polo Petroquímico é um exemplo de um cenário comum na região.
— O comportamento do rio nos municípios não é como era antes. Agora, com um volume bem menor de chuva, ele já sai da cabeceira normal. Os relatos de moradores, gestores e de quem trabalha com navegação são preocupantes — pontua.
Machado acrescenta que a intervenção nos cursos d’água é a maneira mais rápida de oferecer defesa aos moradores e municípios:
— Pode haver outros meios de contenção, mas neste momento, temos que ser práticos e objetivos. A solução do problema passa pela dragagem dos rios.
O que diz o governo estadual
Em nota à reportagem, a Secretaria do Meio Ambiente e Infraestrutura (Sema) informou que uma “série de projetos que incluem estudos sobre os impactos das cheias em diferentes aspectos está em andamento no Plano Rio Grande”. Esses levantamentos serão utilizados para a realização de ações e políticas públicas, “visando à preparação para novos eventos climáticos extremos”.
Sobre a limpeza de corpos hídricos, a Sema afirma que será conduzida no Programa de Desassoreamento do Rio Grande do Sul do Plano Rio Grande, tem como objetivo “promover o desassoreamento e limpeza de arroios, canais de drenagem e sistemas pluviais de municípios que, em decorrência das enchentes, declararam situação de emergência ou estado de calamidade”. A nota diz também:
O programa, em conjunto entre a Secretaria do Meio Ambiente e Infraestrutura e a Secretaria de Desenvolvimento Urbano e Metropolitano, está dividido em dois eixos. Para o eixo 1, rios de pequeno porte, o estado disponibilizou R$ 300 milhões aos municípios que decretaram situação de calamidade ou emergência. O município deverá encaminhar o projeto técnico indicando a extensão do trecho, geolocalização, o volume e tipo de material a ser desassoreado, coordenadas, entre outros. Mais de 200 projetos já foram recebidos pela Sedur. A partir da análise do projeto, o estado providenciará o desassoreamento do curso hídrico.
Para os rios de médio e grande porte (eixo 2), o Termo de Referência para a contratação das batimetrias pelo Estado foram analisados e aprovados pelo Comitê Científico do Plano Rio Grande. A partir de agora, serão dados os encaminhamentos para o lançamento do edital de contratação de empresa que irá realizar os estudos. Adicional a isso, o Dnit já está em processo para a contratação de batimetria, que deverá ser incorporada aos estudos do Estado. Já está de posse da instituição federal, os dados atualizados de batimetria do Sistema de Navegação da Portos RS.
Os estudos técnicos é que irão definir quais equipamentos poderão ser utilizados para o desassoreamento, a depender da quantidade de material a ser desassoreado e das características do local. Sobre a necessidade de desassoreamento do Lago Guaíba, salvo para navegação, isso também dependerá da conclusão dos estudos.
Sobre o desassoreamento para navegação, a Portos RS, que possui Licença de Operação para o desassoreamento, já realizou duas ações emergenciais para a retirada de acúmulo de sedimentos no Canal de Rio Grande. A dragagem da área externa do canal de acesso ao Porto do Rio Grande está avaliada em R$ 52 milhões e prevê a retirada de 1.850.000 metros cúbicos de sedimentos. O serviço estava programado para acontecer no início de 2025, porém os efeitos das enchentes fizeram com que fosse necessária a sua antecipação.
Também está sendo executado o desassoreamento de locais mais críticos do Canal do Furadinho, em Canoas, um dos principais pontos de atenção na Hidrovia do Guaíba. Com previsão de conclusão em até cinco semanas, a obra já retirou dez mil metros cúbicos de sedimentos de um total de 55 mil metros cúbicos previstos no projeto.
Governo federal realiza batimetrias
Sobre o desassoreamento e dragagem no Estado, o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit) enviou a seguinte resposta:
O DNIT informa que está empenhado em ações de intervenção emergencial na região do Rio Grande do Sul devido ao aumento significativo dos níveis dos rios e à consequente acumulação de sedimentos, que alteraram o leito navegável dos canais. Para enfrentar essa situação, é essencial realizar levantamentos em campo para elaborar um diagnóstico detalhado e um plano de intervenção eficaz para a desobstrução dos canais de navegação.
Com um investimento de R$ 18,5 milhões, serão realizados diagnósticos de infraestruturas, levantamentos hidrográficos, elaboração de um plano de desobstrução, supervisão das obras e monitoramento ambiental, incluindo as dragagens necessárias. Esses esforços permitirão avaliar as condições do leito dos corpos hídricos afetados e definir as ações necessárias para restabelecer as condições de navegação.
Outras ações de dragagens emergenciais estão sendo realizadas pela empresa pública Portos RS, como a dragagem da área externa do canal de acesso ao Porto do Rio Grande e o desassoreamento do Canal do Furadinho, em Canoas.
Além disso, o DNIT conta, desde 2017, com o Plano de Manutenção Hidroviária que ocorre no Rio Taquari. A Diretoria de Infraestrutura Aquaviária do DNIT incluiu esse projeto em seu cronograma de dragagens regulares, monitorando os pontos críticos para garantir a navegabilidade e mitigar os impactos das estiagens que ocorrem no país nessa época do ano.
Durante o período de julho a dezembro de 2024, a dragagem estará em operação para realizar a escavação, carga, transporte e descarga do material dragado, essencial para manter a profundidade do canal de navegação nos rios.