Taneha Kuzniecow Bacchin, 47 anos, é professora de projeto urbano na Universidade Técnica de Delft, na Holanda.
Nascida na capital gaúcha, a pesquisadora é arquiteta urbanista e pesquisa gestão de riscos, com foco em assuntos relacionados ao desenho urbano, à fragilidade ambiental, ao aumento dos eventos meteorológicos e climáticos extremos e ao esgotamento de recursos. A profissional começou a estudar Arquitetura na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), mas se mudou aos 21 anos para Veneza, na Itália, onde concluiu a graduação.
Nesta entrevista para GZH, a gaúcha aborda a temática de cidades-esponja, um conceito que define iniciativas urbanas projetadas para que a água da chuva seja mantida e absorvida por meio de sistemas de drenagem sustentáveis. O objetivo é trabalhar o ciclo completo da água, para reduzir o impacto de cheias, alagamentos e inundações.
A arquiteta também defende a necessidade de respeitar o espaço dos cursos d’água com a manutenção de ambientes verdes (vegetação), azuis (água) e solo permeável, além da ocupação inteligente de orlas e atenção à educação ambiental. A pesquisadora mora em Rotterdam, uma das cidades que servem de modelo no gerenciamento de risco hidrológico.
O que é uma cidade-esponja?
É uma cidade que trabalha o ciclo hidrológico completo, que tem um desenho sensível à água. Ou seja, ela tem uma série de medidas em espaços para receber a água da chuva. Algumas zonas são áreas de detenção e retenção, que podem ser canaletas verdes, pavimento permeável e jardins de chuva. Há infraestruturas verdes e azuis que conseguem gerenciar a precipitação. A água não é desperdiçada e não é drenada para outras áreas, e sim permanece no local o máximo possível, infiltrando-se no solo ou armazenada em reservatórios para ser reutilizada em um momento de seca. A cidade é como uma esponja, que mantém, de forma segura, a água da chuva.
Todas as cidades podem ser uma cidade-esponja?
Com certeza. É preciso colocar em rede o conjunto de praças, parques e áreas permeáveis que já existem e adaptá-los ao sistema de mobilidade urbana. Infelizmente, nós contamos muito com o uso do carro. Se existir investimento em transporte público, em ciclovias, você dá mais espaço para aberturas de corredores verdes e azuis no tecido da cidade. É um projeto integrado de repensar a integração entre a mobilidade urbana, a rede de drenagem, os sistemas paisagístico e ambiental, as condições de uso do solo e as densidades ocupacionais.
A questão é o desenho da orla, do que ela é feita. Ela não deve ser uma linha, mas uma zona de transição capaz de amortecer um volume maior de água em um contexto de cheias. Ela deve ser adaptada em relação à condição fisiográfica e paisagística, em um limite entre corpo de água e terra.
Cartão-postal de Porto Alegre, o Guaíba desperta hoje medo em parte da população devido à cheia. Como reverter isso?
A questão é o desenho da orla, do que ela é feita. Ela não deve ser uma linha, mas uma zona de transição capaz de amortecer um volume maior de água em um contexto de cheias. Ela deve ser adaptada em relação à condição fisiográfica e paisagística, em um limite entre corpo de água e terra. Porto Alegre é uma cidade com uma topografia variada, com zonas altas e baixas, o que faz com que a água da chuva escorra para dentro da cidade devido à gravidade. Na parte alta, o volume não se infiltra no solo, mas, isso sim, se move para baixo. Por isso, é muito importante, dentro do contexto do tecido de Porto Alegre, esse desenho de microbacias, de termos mais solo permeável. Sendo bem clara: é preciso reduzir a quantidade de impermeabilização do solo devido à urbanização. Também são importantes bacias de retenção e detenção, que podem ser espaços verdes, em parques e praças públicas. Essas bacias são locais para serem usados em momentos de grande vazão, para que a água seja armazenada ali, como se fossem pequenas bacias, mesmo, que é uma forma de dar mais espaço à precipitação em caso de chuva extrema. É uma questão de desenho da infraestrutura, de adaptação do ambiente já construído.
Por onde Porto Alegre deve começar para se tornar uma cidade-esponja?
Isso parte da identificação de áreas que podem ser adaptadas. É possível começar pela identificação dos grandes corredores de mobilidade urbana de Porto Alegre. Há um fluxo de transporte, que torna difícil adaptar esses locais. Mas outras vias, não tão hierarquicamente vitais, podem ser transformadas para receber uma mobilidade lenta, com ciclovia, áreas verdes e azuis. Isso é uma análise do tecido urbano. Áreas que estão recebendo novos empreendimentos são as ideais para ter essa concepção. Já a adaptação pode ser mais difícil em áreas consolidadas do ponto de vista de identidade cultural e valor econômico. Mas esse tipo de mudança deve começar com uma análise que integre hidrologia, geotecnia, transporte, urbanismo e paisagem. Na união desses campos disciplinares, você consegue identificar áreas de Porto Alegre que podem ser adaptadas.
Quais cidades podem ser exemplos para a Capital e o Rio Grande do Sul como um todo?
Rotterdam, onde moro, é um exemplo mundialmente conhecido de cidade-esponja. Ela desenvolve um plano estratégico de adaptação climática, que é a base do plano diretor. Existem várias áreas específicas desse trabalho. Um exemplo é a Water Square (Praça de Águas), que é um equipamento público de esportes ao lado de uma escola. Há uma quadra de basquete rebaixada em relação ao nível da rua, como se fosse uma bacia de detenção. Ela é pintada de azul para identificar isso. Existe todo o desenho de rebaixamento de solo, que faz com que o fluxo de vazão em excesso da área adjacente chegue até ali e, de maneira segura, entre nessa bacia de detenção, que é a quadra de basquete. Outro exemplo é o chamado de jardim de chuva, um local rico na escolha de plantas, na densidade da vegetação, que é um mecanismo de drenagem. A água que ali chega é filtrada pela vegetação e permanece nesse solo por um determinado momento; depois, é absorvida pela rede de tubulação. Outra medida importante para um caso extremo é um grande estacionamento subterrâneo, que funciona como um enorme tanque. No caso de chuva extrema, parte da vazão é direcionada para esse lugar e armazenado no subsolo.
A cidade é desenhada para conviver com períodos chuvosos, mas, sem chuva, a estrutura segue tendo utilidade pública. É o resumo do que é feito na Holanda?
Todos os projetos no contexto holandês são desenhados para a segurança hídrica. No entanto, são acompanhados por um olhar para a melhoria da qualidade espacial e de equipamentos públicos, ou seja, há uma busca por uma paisagem que seja uma infraestrutura verde e azul multifuncional. As áreas verdes dão oportunidades de recreação, cultura e lazer, que melhoram a saúde física e ambiental da população. Também é cientificamente provado que exposição à natureza reduz o nível de estresse e estimula o exercício físico. Portanto, não são projetos que ajudam apenas na gestão da água, mas que melhoram o microclima, a qualidade do ar e da vida da população.
Na praia, a criança holandesa não constrói castelos, e sim diques, porque faz parte do imaginário, da base cultural do ser holandês o risco hidrológico.
Os exemplos citados são projetos públicos focados na adaptação da cidade às mudanças climáticas. Qual é a parte da população nisso? Há cobranças, os habitantes ajudam?
Dois terços da Holanda estão abaixo do nível do mar. A cultura holandesa foi construída a partir da gestão hídrica, da dinâmica entre sistema de terra e água, então isso faz parte da identidade, de ser holandês. Existe uma consciência do risco, mas a infraestrutura é dimensionada para isso. O investimento de infraestrutura é feito com projeções de longo prazo, de 50, cem anos. Existe um constante trabalho também de produção de cenários, de como a sociedade, a economia, a política e o ambiente estarão em um futuro distante. A capacidade adaptativa de resiliência do ambiente construído e natural da sociedade é muito presente. Para que os Países Baixos permaneçam a salvo das águas, é preciso envolver a cidade inteira, não só a política. Na praia, a criança holandesa não constrói castelos, e sim diques, porque faz parte do imaginário, da base cultural do ser holandês o risco hidrológico. Ao mesmo tempo, isso faz com que seja uma sociedade que não aceita se expor a esse risco, busque o controle da situação e foque no planejamento de ações de longo prazo.
O que foi feito em Porto Alegre nos últimos anos ou décadas que podemos entender como contrário à ideia da construção de uma cidade-esponja, apta para lidar com o risco?
Houve uma drástica redução das áreas verdes da cidade, que se transformaram em corredores de mobilidade urbana. Há também uma intensidade alta de uso do solo em zonas baixas, expostas à inundação do Guaíba, como todo o projeto da orla, e, em especial, a Zona Sul, que recebeu um novo desenho de prédios nos últimos anos. São exemplos de locais que deveríamos ter tido um cuidado maior em relação a essa zona de transição entre o lago e a cidade. As escolhas de uma densificação alta de determinados pontos, que fizeram com que áreas abertas fossem reduzidas, leva ao desastre. Se você não consegue gerenciar a vazão que foi gerada pela água da chuva, ela vai chegar em zonas mais baixas da cidade. O problema ocorre quando não há um espaço de amortecimento, um ponto seguro para gerenciar essa água. Por isso, é fundamental entendermos como ocupamos a cidade, a impermeabilização extensiva e intensiva do solo urbano. É importante entender que a infraestrutura urbana não é só feita de tubulações, canaletas, condutos, ruas e avenidas. Esta é uma mudança de mentalidade que precisamos ter: espaço público, solo permeável, áreas verde e azul devem ser vistos também como parte da infraestrutura de Porto Alegre.
O Muro da Mauá é o principal ícone do sistema de proteção contra cheias na Capital. Esse tipo de estrutura dialoga com ser uma cidade apta para lidar com riscos climáticos?
O Muro da Mauá é uma medida estrutural possível, que foi muito importante no contexto vivido. Infelizmente, não foi bem mantido, mas funciona como uma linha de proteção do Centro Histórico. O debate importante é a mudança de paradigma. Então, o muro é uma das medidas possíveis, mas ela não deve ser a única: precisa ser colocado junto a uma série de ações que dão mais espaço de amortecimento, de retenção e detenção da vazão em excesso. É necessário um redesenho da orla em pontos críticos para que ela consiga ser um espaço amplo de transição entre o Guaíba e o tecido urbano. Não posso dar uma resposta sobre se é necessário aumentar ou retirar o muro, pois ele faz parte de uma combinação de medidas. O debate deve levar em conta os cenários possíveis. Quais são os espaços que podem estar colocados para receber o volume a mais de água em um contexto extremo? Aqui entra a importância de um desenho que trabalhe de maneira integrativa entre as infraestruturas do tecido urbano em diferentes escalas. A redução do risco não ocorre só com o muro, mas com união de medidas sistêmicas.
Porto Alegre teria lidado melhor com a cheia se fosse uma cidade-esponja?
Com certeza. O risco é reduzido em uma cidade que integra aumento de áreas abertas verdes e azuis, solo permeável e amortecimento ao longo da orla. Cito mais uma vez a Holanda, com o projeto Espaço para os Rios. A implementação dele, nessa condição de esponja em áreas ribeirinhas, fez com que, no início deste ano, houvesse risco reduzido ao longo dos rios mesmo em um período que foi de muita chuva.
Atitudes individuais podem ajudar na criação de uma cidade-esponja?
Temos a tendência a pavimentar áreas onde passam automóveis. Isso pode ser substituído por um pavimento permeável, que já traz um impacto positivo muito grande.
Sim. Algumas atividades em pequena escala podem contribuir, tanto do ponto de vista da conscientização ambiental, quanto da parte prática. Se você tira uma pedra, um pedaço de pavimento, e deixa o solo exposto, potencialmente permeável, você já está melhorando, por pouco que possa parecer. Na Holanda, moradores pedem para a prefeitura retirar a pavimentação da calçada adjacente ao edifício e ali são plantados pequenos jardins. Isso ocorre em pequena escala, mas contribui para reduzir a superfície impermeável do solo. Se isso é feito de maneira sistêmica, você cria um corredor verde na cidade. Temos a tendência a pavimentar áreas onde passam automóveis. Isso pode ser substituído por um pavimento permeável, que já traz um impacto positivo muito grande. Se você está trabalhando com jardins de chuva, que têm tecnologia de drenagem, você também ajuda.
Quais exemplos de cidades que mudaram de postura após a ocorrência de desastres?
Copenhague, na Dinamarca, sofreu com chuva intensa nos últimos anos. A cidade repensou seu sistema de planejamento urbano para adaptação climática. Várias zonas da cidade foram redesenhadas a partir desse conceito de infraestrutura verde e azul. As praças também foram readaptadas com bacias de retenção e detenção, além de jardins de chuva. A Austrália tem investido muito, principalmente em Melbourne, onde o conceito de desenho sensível às águas, water-sensitive urban design, foi desenvolvido. No contexto brasileiro, Belo Horizonte, Curitiba e São Paulo são cidades com algumas boas iniciativas.
Porto Alegre e o Rio Grande do Sul buscam o que fazer para evitar novas cheias no futuro apenas depois de uma tragédia. É comum que a mudança de paradigma em relação ao clima ocorra em situações assim ou há exemplos de prevenção?
Muitos dos que trabalham na minha área, com gestão de risco, costumam dizer que, infelizmente, você precisa da catástrofe para mudar mentalidades. Isso acontece em qualquer lugar. É necessária uma situação de emergência para repensar os planos e os projetos. Você tem que chegar nesse ponto, no que aconteceu no Rio Grande do Sul, para que exista uma sensação de urgência, de que precisamos fazer alguma coisa, repensar como construímos, como ocupamos e urbanizamos. No dia a dia, todos nós, em diferentes escalas, estamos envolvidos com nossas vidas, e não nos damos conta das escolhas que fazemos. Não pensamos em como o mercado impõe uma determinada forma de ocupação e produção do espaço, que é destrutiva em relação à qualidade das condições naturais. Sem uma saúde de processos naturais, teremos catástrofe como a que estamos vendo (no Rio Grande do Sul). Espero que a dimensão do que aconteceu no Estado traga uma conscientização pública e individual na sociedade, da relação entre ambiente construído e o ambiente natural. É necessário um respeito. É preciso reabilitar a natureza no espaço urbano, pois é ela que sustenta a qualidade de vida nas cidades. Precisamos de conscientização não só a curto prazo, no contexto da emergência, mas capaz de definir ações de médio e longo prazos.