Ainda que discordem quanto à natureza do Guaíba – se é rio ou lago –, especialistas ouvidos pela reportagem concordam que é necessário aumentar a proteção do principal corpo hídrico de Porto Alegre. O debate voltou a ganhar destaque com a enchente histórica registrada no RS neste mês de maio e suas consequências para a cidade e a sociedade.
Por também considerar o Guaíba como detentor de características mistas, como outros especialistas (leia aqui a outra parte desta reportagem), a Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan) defende sua classificação como curso d'água. A entidade aponta características de lago, em determinadas partes, com matas de restinga e velocidade mais lenta em determinados setores; e de rio, com uma grande vazão e velocidade no seu canal central, com renovação da água e matas ciliares. O pormenor da nomenclatura, entretanto, não interessa à entidade.
— Agora, o que é importante para nós, como cidadãos: que ele é altamente alagadiço e merece a proteção — indica Francisco Milanez, diretor científico e técnico da Agapan.
Para ele, a legislação atual protege mal os lagos, é aplicada de forma errônea ao Guaíba e necessita de correção. O professor Rualdo Menegat, da UFRGS, concorda que uma das raízes do problema, no que tange à proteção das margens, foi a concepção da atual legislação ambiental. Por ser a única capital à margem de um lago e o único Estado com patrimônio de lagos, lagunas e lagoinhas em um país fluvialista, estes não foram incluídos como locais importantes de preservação. Faltaram manifestações e, porventura, conhecimento aos parlamentares, somadas a questões como ocupações por arrozais, segundo Menegat. Ele defende serem necessárias leis que protejam os lagos integralmente.
No caso do Guaíba, a classificação foi uma discussão teórica e científica, mas os interesses especulativos imobiliários se apropriaram da discussão, na visão de Milanez, porque a proteção era menor. Milanez sustenta que a maior área de proteção prevista para os rios resolveria a questão de riscos.
Procurada quanto à classificação de lago e permissões consequentes disso, a Smamus informou que a definição técnica consta no Atlas Ambiental de Porto Alegre, feito pela então Smam em conjunto com a UFRGS, em 1998. A nível estadual, o decreto nº 38.989/1998 criou o multidisciplinar Comitê de Gerenciamento da Bacia Hidrográfica do Guaíba, compartilhando da mesma visão.
E a legislação?
A legislação municipal mais recente em relação ao Guaíba é a lei Nº 12.848/2021, que institui a Política Municipal de Sustentabilidade Hidroviária de Porto Alegre. Ela prevê "desenvolver ações e pesquisas relacionadas às medidas de mitigação e de adaptação às mudanças climáticas na orla do Lago Guaíba", afirmando que a cidade vai "preservar, conservar e controlar áreas que sejam representativas dos ecossistemas das faixas terrestre e fluvial da orla do Lago Guaíba e das Ilhas do Delta do Jacuí, com recuperação e reabilitação das áreas degradadas ou descaracterizadas", entre outras questões. A pasta argumenta estar amparada nesses argumentos técnicos e legais para essas questões definidas há anos.
A Secretaria do Meio Ambiente e Infraestrutura do RS (Sema), por sua vez, cita ainda como referência para a definição o decreto estadual nº 53.885/2018 e o Plano de Recursos Hídricos da Bacia Hidrográfica do Lago Guaíba de 2002, aprovado pelo Comitê de Bacia.
Para Milanez, a enchente é a maior demonstração prática de que é necessário proteger o corpo hídrico: lugares que estão dentro das áreas de proteção ficaram debaixo d'água em Porto Alegre, pois estão em várzeas – que são protegidas por lei federal, mas não foram respeitadas. As leis existem pois é necessário proteger tanto o curso d’água, para evitar erosões e mais alagamentos, quanto a área territorial, para não ser destruída, ressalta.
É necessário entender que as áreas de várzea são inadequadas para moradia, porque são o lugar de amortecimento das enchentes, argumenta Milanez. No entanto, comprá-las a preços baixos, drená-las e vender essas áreas de risco também podem ser lidas como práticas da especulação imobiliária. As construções e ocupações mais antigas já estão feitas e, por isso, deve-se ter consciência dos riscos. Ocupar novos espaços, entretanto, deve ser coibido.
Além das várzeas, as remoções das matas ciliares e das matas de encostas, que protegem o leito do curso d’água e as cidades, evitando a erosão, também contribuíram para o cenário atual, segundo Milanez. A mata ciliar foi desprotegida pelo governo atual por meio de mudanças no Código Estadual do Meio Ambiente, lembra.
Os valores previstos de APP pela lei, seja rio e lago, ainda assim seriam insuficientes para evitar a inundação das cidades no RS
JAIME FEDERICI GOMES
Professor de Engenharia Civil da Escola Politécnica da PUCRS
— Mesmo quando a gente não estava em uma crise climática, antes, o meio ambiente era muito importante. Mas agora nós estamos no auge, no olho do furacão de uma crise climática. E as leis têm de refletir isso. Com a crise climática, nós vamos ter de aumentar a proteção, as APPs — salienta.
Alteração para rio seria insuficiente
O que produziu a inundação no RS foi uma grande quantidade de chuva, ressalta o professor Rualdo Menegat. Ele concorda que a denominação é importante, mas avalia que a palavra não é a causadora do problema: pode-se chamar de rio, lago, estuário ou o que quiser, porém, a especulação imobiliária continuará a existir. O professor realizou estudos sobre os rios da Região Metropolitana que afluem para o Guaíba e afirma que, nos últimos 20 anos, todas as cidades expandiram suas estruturas urbanas até o limite dos rios.
Trata-se do fenômeno de "passar a boiada" que houve no país: os planos diretores urbanos foram desestruturados para permitir que isso acontecesse – seja rio, seja lago, seja o nome que for.
— Então, dizer que o problema da especulação imobiliária é a designação é uma falácia — aponta.
Ele merece trégua em termos de exploração dos recursos, areia, destinação de líquidos, efluentes, tóxicos, tudo. Não é possível que se permita construir mais cidade sobre os últimos estoques ambientais que nós temos.
RUALDO MENEGAT
Professor da UFRGS
O professor Jaime Federici Gomes, da PUCRS, reconhece que a definição de lago e rio é bastante importante para a definição da área de preservação, tendo em vista a diferença prevista em lei – portanto, a definição do Guaíba como lago "abre oportunidade de ocupação mais próxima". Gomes também salienta que o processo de ocupação de várzeas e margens dos corpos d’água é um dos principais problemas enfrentados pelos núcleos urbanos no que tange às inundações. Pela lei nº 12.727/2012, Porto Alegre e outros municípios afetados estariam desrespeitando, em alguns trechos das cidades, a APP. Mas o professor faz uma ressalva:
— Do ponto de vista da enchente ocorrida em maio de 2024, da ordem superior à verificada em 1941, devido ao volume excepcional de chuva e escoamento, os valores previstos de APP pela lei, seja rio e lago, ainda assim seriam insuficientes para evitar a inundação das cidades no RS.
Contudo, a preservação de APP no Brasil é fundamental para minimizar inundações e preservar processos erosivos das margens, vazões mínimas e meio ambiente, defende o professor.
Para além do debate da classificação da natureza do Guaíba, faltam leis de proteção, concorda Menegat.
— É a água que nós bebemos. E o Guaíba, nós vimos bem agora nessa enchente, é o nosso destino. O que acontece com ele, acontece conosco — lembra. — Ele merece trégua em termos de exploração dos recursos, areia, destinação de líquidos, efluentes, tóxicos, tudo. Não é possível que se permita construir mais cidade sobre os últimos estoques ambientais que nós temos.
Uma das soluções, para o professor, seria implantar um corredor ecológico em toda a margem do Guaíba, interconectando os últimos estoques ambientais, até o Delta do Jacuí, com corredores transversais, que vêm dos rios e morros – como uma cidade-esponja.
— Não precisamos gastar muito dinheiro, precisamos, apenas, de vontade política e decisão em proteger a riqueza que nós temos — pontua.
Ação civil pública quer reconhecimento como curso d’água
Ao lado do Instituto Gaúcho de Estudos Ambientais (Ingá) e do Movimento de Justiça e Direitos Humanos (MJDH), a Agapan ingressou com uma ação civil pública (processo nº 5021495-37.2022.4.04.7100) para solicitar a proteção jurídica da APP do Guaíba. O objetivo é o reconhecimento judicial como um curso d’água natural e perene com largura superior a 600 metros, dotado de uma faixa marginal de proteção de 500 metros ao longo de suas margens, denominada de APP – isto é, um espaço territorial especialmente protegido e declarado por lei.
Na última movimentação, o processo foi redistribuído para a 20ª Vara Cível e de Ações Especiais da Fazenda Pública da Comarca de Porto Alegre e Juizado Especial da Fazenda Pública.